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As ideias de Bourdieu sobre arte e sua aplicação no contexto do século XXI

Pierre Bourdieu (1930-2002), filósofo e sociólogo francês, é um dos principais nomes vinculados aos estudos sistêmicos da arte, ou seja, à área de conhecimento que estuda a arte como sistema cultural e fenômeno social, analisando as relações existentes entre os diversos agentes que operam no meio artístico, tais como artistas, críticos, galerias, museus, etc. Em sua ampla obra, que transita por diversas áreas, Bourdieu dedicou-se com muita frequência a questões relativas à arte e à cultura, procurando identificar suas especificidades e como se dá sua inserção no contexto social moderno e capitalista. Assim, Bourdieu estabeleceu um complexo sistema de relações e dependências aplicado ao que ele chama de campo artístico, que até hoje influencia e serve como referencial aos estudos sistêmicos da arte.

 

Para que se possa começar a entender o pensamento de Bourdieu, talvez seja necessário, primeiramente, estabelecer o que ele entende por campo artístico, um dos seus conceitos básicos. Na teoria sociológica de Bourdieu, a noção de campo pode ser entendida como as relações de poder e as práticas existentes em um espaço social específico: cultural, econômico, educacional, científico, etc. O campo artístico moderno teria surgido nas décadas de 1870 e 1880, a partir da superação do modelo acadêmico francês, com a implantação de um novo parâmetro estético. Com o desenvolvimento da arte moderna, o corpo hierárquico rígido e formal da instituição acadêmica foi substituído por um campo de concorrência, no qual não existia mais uma autoridade artística capaz de estabelecer parâmetros, embora muitos almejassem esta condição. Este campo constitui, segundo Bourdieu, a incorporação de um sistema institucional com uma pluralidade de visões divergentes.

 

O estabelecimento do campo artístico trouxe à tona uma série de posicionamentos frente a especificidades da arte, constituindo assim uma espécie de artworld, ou seja, um universo de essência puramente artística e uma estética de caráter pretensamente puro e a-histórico. Bourdieu, ao mesmo tempo que reconhece esta estética pura como um produto legítimo do campo artístico, necessário para o funcionamento do mesmo nos termos que ele se propõe, refuta-lhe a pretensão a-histórica, situando-a necessariamente dentro do processo histórico da instituição artística. Segundo ele, a estética pura não pode fazer-se a não ser em um processo histórico, vinculada ás condições que a criaram, e necessária para que estas condições se realizem. Assim, o campo autônomo da arte se realiza, voltado para suas próprias especificidades que demandam uma compreensão particular, mas inserido, em uma visão mais ampla, como produto histórico do homem moderno, fruto de condições sociais que o tornaram possível. O autor realiza, assim, uma abordagem multidisciplinar que, ao mesmo tempo, reconhece e legitima a autonomia e especificidade da arte, inserindo-a em contexto histórico e social, no qual é possível determinar sua natureza e compreender a formação de seus mecanismos.

 

À noção de campo, associa-se a noção do habitus. Bourdieu refuta a relação de escolhas e práticas culturais a aspectos biográficos ou pessoais de artistas ou escritores. Antes disso, prefere condicionar estas escolhas e práticas ao que ele chama de habitus, ou seja, um sistema de disposições inconscientes formado pela interiorização das estruturas objetivas do campo. O habitus, nesse sentido, tende a produzir práticas e carreiras que se ajustam às estruturas objetivas do campo. Bourdieu trabalha com a noção de que o habitus socialmente constituído torna possível que diferentes categorias de escritores e artistas ocupem posições que lhes sejam oferecidas por um determinado estado do campo, adotando as posturas estéticas ou ideológicas objetivamente vinculadas a estas posições. Dessa forma, Bourdieu estabelece uma espécie de supremacia sociológica na análise das práticas culturais, uma vez que estas responderão, no seu cerne, a um conjunto de possibilidades que lhe são oferecidas pela organização social do meio artístico, estabelecida através dos conceitos de campo e habitus.

 

Bourdieu aborda ainda uma série de questões decorrentes da tensão existente entre o campo artístico autônomo e o campo econômico, do qual a cultura em geral possui uma relação de dependência. Segundo Bourdieu, a lógica do campo artístico estabelece uma espécie de recusa do comercial, ou seja, a afirmação da especificidade do campo artístico, baseada em condutas antieconômicas e desinteressadas, não permite que o mesmo ceda à lógica econômica sem assim se descaracterizar como campo autônomo. Por outro lado, a relação com a economia é inevitável na sociedade capitalista. Dessa tensão, emerge o que Bourdieu chama de uma lógica econômica específica, baseada na denegação do econômico, na qual se estabelece um valor artístico puro, adverso ao valor comercial, que pode ser entendido como o valor simbólico. Assim, o mercado de arte pode ser entendido como um mercado de bens simbólicos, no qual o objeto artístico flutua entre dois pólos antagônicos (o simbólico e o comercial), que não raramente se repelem, embora precisem coexistir em uma mesma lógica. Se por um lado, o valor simbólico não pode prescindir de todo do comercial, uma vez que está inserido em um modelo capitalista, por outro o valor comercial também não pode prescindir de todo do simbólico, sob pena de ver seu bem descaracterizado como produto específico do campo artístico, afetando por consequência seu valor como mercadoria.

 

Tudo isso gera um mercado com regras bem específicas e particulares, que desafiam a lógica puramente econômica, estabelecendo uma ambiguidade e uma oposição entre a chamada arte de vanguarda (voltada ao valor simbólico e ainda não absorvida pelo mercado) e a arte consagrada (voltada ao valor comercial e absorvida pelo mercado). Dessa forma, Bourdieu parece estabelecer um triste ciclo de vida aos estilos e movimentos artísticos, uma vez que eles surgem como vanguarda, desafiando a arte consagrada e procurando agregar valor simbólico, e ao obter sucesso nessa empreitada, transformam-se justamente naquilo a que se opuseram, ou seja, arte consagrada que agrega valor comercial, até serem desafiados e substituídos por uma nova vanguarda que cumprirá ciclo idêntico.

 

Essa dicotomia entre valor artístico e valor comercial estabelecida por Bourdieu já tem sido relativizada por autores contemporâneos, entre as quais vale destacar a alemã Isabelle Graw (1962), crítica de arte e professora de teoria da arte. Graw concorda que as décadas de 1960 e 1970 assistiram, de fato, uma separação entre valor artístico e comercial, na qual artistas bem sucedidos financeiramente perdiam credibilidade artística. No entanto, segundo ela, o mercado assumiu, no novo milênio, um papel preponderante no cenário da arte, já se configurando, ele próprio, em árbitro não apenas do valor comercial, mas também do valor artístico das obras, fazendo com que este último seja gerado a partir do sucesso comercial. Em outras palavras, Graw fala de uma realidade na qual a dicotomia entre valor artístico e comercial não se apresenta mais nos termos colocados por Bourdieu, ou seja, o objeto artístico não possui aquela ambiguidade de valor que tendia a contrapor o capital simbólico ao capital econômico. Indo ainda mais longe, Graw aborda uma realidade na qual ela percebe que o mercado, expressão máxima do valor econômico, também pode conferir valor artístico e o faz, algo inimaginável no modelo de Bourdieu.

 

A constatação desta realidade permite diversas considerações. Uma delas é a de que o campo artístico conceituado por Bourdieu teria perdido sua autonomia, ou sua especificidade, ao subordinar-se à lógica econômica e tornar indistinguível o que seria o valor específico do campo (o simbólico) do valor comercial. Seguindo a lógica de Bourdieu, de fato, parece inegável que, no momento em que a arte elege o mercado como árbitro único do valor artístico do seu objeto, ela perde em termos de especificidade de seus valores, uma vez que o mercado se rege por razões multidisciplinares. Outra consideração é a de que a contradição entre valor simbólico ou artístico e valor econômico ou comercial talvez nunca tenha sido tão antagônica e excludente como imaginada por Bourdieu ou como se apresentava no momento histórico em que ele escreveu sobre isso. Até que ponto a realidade diagnosticada por Bourdieu no campo artístico não seria fruto de uma tensão política e ideológica que atingiu seu ponto culminante nos anos 1960 e 1970 e que perdeu força nas décadas seguintes? A chamada arte contemporânea, surgida nos anos 1960, possuía um viés ideológico crítico à mercantilização capitalista do objeto artístico e, nesse sentido, estava em sintonia com o ambiente social e político da época, que vivia um momento de tensão entre os blocos capitalista e socialista. Nesse ambiente, o reflexo da crítica ideológica ao modelo capitalista no campo artístico pode ser visto como a contraposição de um valor considerado como verdadeiramente artístico ao valor comercial, uma maneira de opor a este último um valor que permaneceria intocado por ele. A contraposição existiu, mas talvez não devido à natureza supostamente desinteressada do campo artístico, mas sim ao desejo de muitos dos agentes atuantes nesse campo, uma espécie de habitus político incorporado que respondia à tensão ideológica daquele momento histórico. O ressurgimento da pintura e o fortalecimento do mercado de arte ocorrido a partir da década de 1980, aliado com a mudança do contexto sócio-político internacional ocorrida na década de 1990, podem ter trazido um afrouxamento na tensão ideológica suficiente para que a contraposição entre valor artístico e comercial fosse relativizada, levando à realidade diagnosticada por Graw.

 

Especulações à parte, o fato é que o modelo de Bourdieu de mercado de bens simbólicos aplicado ao campo artístico parece encontrar hoje um menor respaldo na observação da realidade do que apresentava no momento histórico em que foi concebido. Tal constatação, no entanto, não retira mérito algum da análise do sociólogo francês. Mudou a realidade do mundo da arte, o contexto internacional é outro, novas tecnologias se agregaram ao cotidiano, trazendo novas possibilidades e mudando as relações entre pessoas, instituições e países. Se o pensamento de Bourdieu hoje parece não dar conta da totalidade de uma realidade que se tornou muito mais complexa do que era quando foi concebido, muitos aspectos de seu modelo de campo artístico ainda permanecem. Muitas práticas e relações de poder dentro do campo artístico ainda obedecem a uma lógica muito próxima do pensamento de Bourdieu. Seu legado aos estudos sistêmicos da arte é enorme, não apenas naquilo em que seu pensamento sobrevive ou é aplicável à realidade dos dias de hoje, como também na sua proposta e método de pensar e identificar os mecanismos sociais que condicionam as práticas artísticas, legitimando-as, consagrando-as e movimentando o mundo da arte.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: ___. A economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 183-202.

 

BOURDIEU, Pierre. Gênese histórica de uma estética pura. In: ___. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 281-298.

 

BOURDIEU, Pierre. A gênese social do olho. In: ___. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.  p. 348-356.

 

BOURDIEU, Pierre. A institucionalização da anomia. In: ___. O poder simbólico. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 255-280.

 

BOURDIEU, Pierre. O mercado dos bens simbólicos. In: ___. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 162-199.

 

BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre: Zouk, 2008. p. 19-99

 

GRAW, Isabelle. El mercado como árbitro del arte? In: ___. ¿Cuánto vale el arte?: mercado, especulación y cultura de la celebridad. Buenos Aires: Mardulce, 2013. p. 29-112.

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​COMO CITAR ESSE TEXTO

 

SILVA, Marcelo de Souza. As ideias de Bourdieu sobre arte e sua aplicação no contexto do século XXI. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!aplicacaobordieu21/rbdbk>. Acesso em: [dia mês. ano].

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