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A Câmara Clara

Filosofia da Caixa Preta

O Ato Fotográfico

Roland Barthes, em seu livro A câmara clara, fala da especificidade e da subjetividade da Fotografia. “Tal foto, com efeito, jamais se distingue de seu referente (do que ela representa), ou pelo menos não se distingue dele de imediato […]” (BARTHES, 1984, p. 14). Ele reafirma a condição da imagem fotográfica como certificadora da realidade. “Por natureza, a Fotografia (é preciso por comodidade aceitar esse universal, que por enquanto apenas remete à repetição incansável da contingência) tem algo de tautológico: um cachimbo, nela, é sempre um cachimbo, intransigentemente.” (BARTHES, 1984, p. 15). E nega à foto sua materialidade, projetando a visão para além dela. “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos." (BARTHES, 1984, p. 16).

 

Barthes comenta da falta de livros que tratem da Fotografia, e acusa a literatura existente de incapaz de dar conta de sua compreensão. Então propõe estabelecer uma "Mathesis singularis (e não mais universalis)” (BARTHES, 1984, p. 19) da fotografia baseada na experiência individual sensorial, a partir das fotos que particularmente o sensibilizavam. Então começa a forjar um glossário aplicado a esse estudo específico. “O Operator é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós […] E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.” (BARTHES, 1984, p. 20). Barthes não fotografava, mas deduz que a emoção do Operator tem relação com o enquadramento imposto pelo “pequeno orifício”, para “surpreender” o que deseja. O autor diz que a Fotografia do Spectator é ligada fundamentalmente ao processo químico de revelação do objeto.

 

Olhando as fotos de sua mãe, há pouco falecida, Roland Barthes encontrou uma foto dela pequena, em uma cena familiar. Na peculiar expressão inocente da menina reencontrou a imagem da mãe. Essa imagem passou a representar para ele, ao contrário das fotos dela que não o satisfizeram, que traduziam apenas sua identidade, “a verdade” dela, a utópica realização da “ciência impossível do ser único”. Restaurando a história de vida de sua mãe a partir das suas fotografias Barthes projeta o seu próprio futuro, o significado encontrado na foto que o tocou. Ele instaurou essa foto no centro do labirinto formado por todas as fotografias do mundo, e decidiu basear sua pesquisa sobre a Fotografia na segurança da experiência que teve com essa foto em particular. (BARTHES, 1984, p. 109).

 

Barthes parte da observação de uma “verdade” fotográfica, onde o Referente da Fotografia não coincide com o dos outros sistemas de representação. Ele chama “de ‘referente fotográfico’, não a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia.” (BARTHES, 1984, p. 114-115). Na Fotografia, portanto, “Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado. E já que essa coerção só existe para ela, devemos tê-la, por redução, como a própria essência, o noema da Fotografia.”. O noema da Fotografia é indicado por Barthes como “isso-foi”, congregando as dimensões de tempo e espaço que caracterizam a relação com a imagem fotográfica.

 

O autor deduz da verdade da imagem a realidade de sua origem, confundindo-as em um sentimento único, no qual sintetizou a natureza da Fotografia, sua característica exclusiva. Inclusive em relação ao cinema há diferenciação, pois a pose, que cristalizada pela tomada fotográfica é fundadora daquela natureza, no cinema é “negada pela sequência contínua das imagens”. O noema da Fotografia impõe a asserção de que a coisa fotografada está “viva”, e o autor nos fala da situação de se fotografar um cadáver, representando essa fotografia “… a imagem viva de uma coisa morta.”. E, no sentido oposto, ao projetar a coisa real para o passado, a fotografia sugere que aquilo já está morto. E novamente diferencia o cinema, que se constitui da mistura de duas poses, o “isso foi” do ator e do personagem.

 

Vilém Flusser, em Filosofia da caixa preta, aborda a fotografia calcado na perspectiva do aparelho fotográfico. Para usá-lo, o fotógrafo precisa adequar os critérios que deseja explorar, estéticos, políticos, epistemológicos, alheios ao aparelho, à sua transcodificação em conceitos, para que possa ser realizado um gesto técnico, intrínseco ao funcionamento do aparelho. Assim, “fotografias são imagens de conceitos, são conceitos transcodificados em cenas.” A existência real de situações fotografáveis, que podem ser imaginadas pelo fotógrafo, somente se dá no gesto fotográfico. “O gesto fotográfico desmente todo realismo e idealismo.”. (FLUSSER, 1985, p. 19).  A práxis fotográfica contraria a ideologia, o fotógrafo precisa se ater às categorias programadas no aparelho, tudo o que é fotografável e está compreendido na imaginação do aparelho, que circunscreve a imaginação do fotógrafo, por maior que seja.

 

A partir da constatação de que as fotografias são onipresentes em nossa cultura, o autor questiona o olhar sobre o fenômeno fotográfico que, mesmo alvo de uma visão ingênua apresenta o problema filosófico da fotografia já em suas esferas mais externas. A questão da foto preto e branco é um exemplo da incapacidade de explicar a Fotografia como “… cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfícies.”. (FLUSSER, 1985, p. 22).  A tentativa de imaginar o mundo em preto e branco remete à abstração de conceitos como verdadeiro e falso, que possibilitaram a construção da lógica aristotélica que, por sua vez, contribui para a construção da ciência moderna. Mas a fotografia colorida é ainda mais abstrata que a fotografia em preto e branco. Os conceitos das teorias químicas que possibilitam a ligação aparente entre o verde da fotografia e o verde do bosque são de uma complexidade maior que as codificações que se interpõem entre o cinza da foto preto e branco e o verde do bosque.

 

O deciframento de fotografias passa pelas intenções do fotógrafo e as do aparelho, que se são distinguíveis não são separáveis uma da outra. A intenção do fotógrafo é “[…] eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis a outros, a fim de se eternizar nos outros.”, e “[…] a intenção programada no aparelho é a de realizar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhe sirvam de feed-back para o seu contínuo aperfeiçoamento.” (FLUSSER, 1985, p. 24). Onde há convergência de intenções fotógrafo e aparelho colaboram, onde há divergência combatem. A fotografia é resultado desse enfrentamento. A crítica deve procurar desvendar o possível sucesso do fotógrafo em impor suas intenções sobre as do aparelho, essas são as “melhores” fotos.

 

Flusser fala sobre a distribuição da fotografia, relacionando seu método discursivo com o do rádio, emitindo a informação para o espaço vazio, ficando disponível para quem a encontrar, a ele correspondendo uma situação cultural específica, exigida pelo método, no caso a massificada. Mas, em seguida coloca a fotografia em limites bem mais estreitos quando diz que “[…] o que distingue as fotografias das demais imagens técnicas é que são folhas.” (FLUSSER, 1985, p. 26). Apesar de acusar o surgimento de “fotografias eletrônicas” continua “[…] o que conta em fotografias é a possibilidade de serem distribuídas arcaicamente.” (FLUSSER, 1985, p. 27). Entretanto, reconhece que o valor da fotografia está na informação que transmite, e a credita como o primeiro objeto pós-industrial, que somente adquire seu significado final através da transcodificação que se dá no aparelho de distribuição, no medium ou canal ao qual são destinadas.

 

O universo fotográfico programa magicamente o nosso comportamento por meio do funcionamento de aparelhos que propõem um pensamento cartesiano. E o aparelho fotográfico robotiza a vida, impondo o seu pulular em um mundo-mosaico.

 

Philippe Dubois, no ensaio O ato fotográfico, fala da dimensão pragmática que afeta a existência mesma da fotografia, não se podendo dissociar a imagem fotográfica do ato que a constitui. Declara querer abordar a Fotografia como uma categoria fundamentalmente epistêmica, que carrega uma relação particular com os signos e o real. Trata de classificar a fotografia como índice, dentro do conceito estabelecido por Charles Peirce (1839 - 1914), buscando uma metáfora no bronzeamento da epiderme humana exposta ao sol. Da tricotomia peirciana, índice, ícone e símbolo, ele destaca ainda a característica icônica da fotografia, dada sua similaridade aparente com o referente, e a possibilidade de alcançar às vezes o status de símbolo.

 

O autor reflete sobre a reprodutibilidade técnica trazida pela fotografia, questão levantada por Benjamin, conferindo o crédito da singularidade indiciária, a contiguidade do signo com a unicidade do referente apenas ao negativo, à polaroide, ao daguerreotipo, à matriz da cópia fotográfica que, segundo ele, sempre será única, dentro de sua categoria de índice. E é essa característica indicial que ressalta quando a fotografia se aplica às funções de atestação e designação. “Enquanto índice, a fotografia é por natureza um testemunho irrefutável da existência de certas realidades.” (DUBOIS, 1993, p. 74), diz sobre a função de atestação, que comprova a existência de algo. O princípio de designação é o “[…] traço indiciário, por natureza [sic], não apenas atesta, mas, mais dinamicamente ainda, designa. Aponta (é de fato todo o punctum barthesiano).” (DUBOIS, 1993, p. 75). Ele diz que “[…] o índice fotográfico aponta com o dedo.”. É “[…] pura força designadora ‘vazia’ de qualquer conteúdo.” (DUBOIS, 1993, p. 76). A foto não traz explicações sobre o referente, ela prova que isso foi, mas não diz o que isso significa.

 

Dubois procura dirimir uma “absolutização da Referência em Fotografia”, através de três observações limitativas, uma distinguindo sentido e existência, a contingência ontológica não se estabelece pela simples designação. Outra observação delimitando o exíguo momento do processo fotográfico, em que não há a interferência de escolhas, e o princípio da gênese automática pode ser considerado válido. E por último, coloca a distância entre o signo fotográfico e seu referente, tanto no espaço quanto no tempo. Aqui usa o exemplo do filme Blow up (1966), de Antonioni, no qual a fotografia tem papel central, ficando, entretanto, submetida à limitação espaço-temporal sua função de índice. (DUBOIS, 1993, p. 91).

 

Ao lado desses traços genéricos do índice fotográfico o autor relaciona quatro características específicas que o diferenciam de outras espécies de signos indiciários, definindo a fotografia como uma verdadeira categoria epistêmica: separada, plana, luminosa e descontínua. O primeiro traço coincide com a distância citada anteriormente, sendo o índice fotográfico diferenciado de outros, como o ready-made, a body art, o happening ou a performance, que congregam índice e referente, mantendo entre eles apenas uma separação simbólica. O segundo ressalta o aspecto de “fatia” da realidade, baseada na visão monocular do dispositivo ótico e no “corte” da profundidade de campo. Os dois últimos traços, luminosa e descontínua, estão relacionados à impressão da luz sobre o suporte. E o autor avisa para não confundir a fotografia com a imagem gerada da “trama eletrônica” (DUBOIS, 1993, p. 102).

 

As três obras têm um objetivo em comum, elaborar uma teoria que alcance o fenômeno fotográfico. Curiosamente as três o fazem não apenas seguindo caminhos ou pistas diferentes, mas também chegando a lugares diferentes. Assim como três fotografias de um mesmo motivo tomadas de pontos de vista diversos produzirão necessariamente imagens “igualmente” diversas. Barthes escreve três anos antes de Flusser e sete de Dubois, e parece que os últimos partem, em seus textos, de uma resposta ao primeiro para depois buscarem seu próprio percurso. Mas as proposições conceituais necessárias a qualquer tentativa de caracterizar um conhecimento ainda pouco explorado, embora autênticas, continuam fazendo eco nas proposições emitidas por Barthes, que atinge um diferencial empático com sua escrita mais poética e envolvente.

 

A proposta de Barthes, de compreensão da Fotografia como meio “invisível”, é combatida por Flusser quando ele diz que “O gesto fotográfico desmente todo realismo e idealismo.” (FLUSSER, 1985, p. 19). Este pretende esclarecer a situação particular da Fotografia que, centrada no aparelho, é uma imagem transcodificada de um conceito, articulado por um gesto técnico e eleito pelo fotógrafo dentre as quase infinitas possibilidades geradas pelo aparelho. A imagem fotográfica é construída, mas é uma construção que parte de conceitos preconcebidos ou pré-programados. Já Dubois concorda com Barthes ao declarar o índice fotográfico “[…] pura força designadora ‘vazia’ de qualquer conteúdo.” (DUBOIS, 1993, p. 76). Ao negar o conteúdo cultural, conceitual, epistêmico da ação fotográfica, Barthes e Dubois fazem como que um contraluz sem flash, atribuem um peso negativo ao conteúdo ignorado do motivo principal da imagem. Ver nessa fotografia o cenário, que efetivamente foi o referente da mesma, não como a escolha arbitrária que consiste na reprodução da tentativa de satisfação das expectativas e aspirações do fotógrafo é deixar-se cegar pela luz que encobre a imagem fotográfica.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BARTHES, Roland. A câmara clara: Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984. Tradução Júlio Castañon Guimarães.

 

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Editora Papirus, 1993.

 

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

 

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