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Visão cristã de mundo:

do surgimento ao questionamento da hegemonia da Igreja

Dois mil anos condensados em 600 páginas. Essa foi a tarefa a que se propôs o professor de Filosofia e Psicologia Richard Tarnas em A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de mundo. Nascido na Suíça, filho de pais norte-americanos e criado nos Estados Unidos, Tarnas leciona no Instituto de Estudos Integrais da Califórnia. De 1980 a 1990, ele se dedicou a destrinchar os cânones constitutivos do que se convencionou chamar “pensamento ocidental”. Uma década depois, o livro virou um best-seller. O sucesso se justifica. Tarnas não fez uma colagem de opiniões ou reedição do que já foi dito. Foi buscar nas fontes primárias elementos para desenvolver suas teses.

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Nesta resenha, são tratados os capítulos referentes à visão cristã de mundo, de seu início ao auge, no medievo, até o surgimento dos elementos que levariam ao questionamento da hegemonia da Igreja Católica, na transição para a modernidade. O autor analisa aquelas que são, em sua opinião, as fontes da cristandade: judaísmo, classicismo e herança platônica. Ao mostrar como as três se amalgamaram para originar o cristianismo, Tarnas apresenta uma abordagem inovadora, revelando de que forma os primeiros líderes cristãos lidaram com a conformação psicológica e cultural da época para impor a nova crença.

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Comecemos com o judaísmo, a grande base da cristandade. Na visão hebraica, os atos de deus e as coisas da vida eram uma mesma realidade, tanto que em alguns momentos fica difícil separar a lenda da história no Velho Testamento. O deus judeu era único, com vontade soberana, que exigia temor e obediência. Durante dois mil anos, esse povo ouviu profetas proclamarem a chegada do messias que surgiria para dar fim a séculos de angústias e derrotas, que redimiria os bons e puniria os maus.

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É nesse ambiente, cheio de expectativas, que surge Jesus de Nazaré. No entanto, diferentemente do esperado pelos judeus, ele não é um rei profano ou um grande profeta, mas passa a ser visto como o próprio filho de deus, o salvador não só do povo de Israel, mas de toda a humanidade. Para Tarnas, mais que as pregações de Jesus e João Batista, é decisiva para a nova fé a reação dos seguidores de Jesus a partir de sua crucificação e a crença na ressurreição. Rapidamente, depois de sua morte, há o que o autor chama de nova conceituação de deus e da humanidade. A cristandade reivindica ser a realização das esperanças judaicas.

 

Os judeus, no entanto, como mostra Tarnas, não se empolgaram muito com Jesus. Tanto que houve pouca conversão entre eles. Em vários outros lugares, porém, a aceitação à nova fé foi grande. Cristo não era mais um dos tantos deuses mitológicos, longe do mundo dos homens. Era ele próprio um homem, viveu, sofreu e morreu, era um ser histórico.

 

A cristandade já tem uma base forte, adaptada do judaísmo: deus uno, onipresente e onipotente, o filho feito homem que veio à Terra para salvar toda a humanidade. Pela primeira vez, um deus que se diz universal. Mesmo os que não professam o cristianismo estão sob sua proteção ou sujeitos a sua ira divina. A nova fé, no entanto, precisa expandir-se. É onde entra o segundo elemento. Para Tarnas, o êxito na propagação da fé cristã e sua universalidade filosófica são muito favorecidos pela cultura helenística e pela mudança política na região da Palestina, que obrigou os cristãos a se espalharem depois da morte de Jesus. A cultura greco-romana tinha vários elementos de universalidade, “o Logos da filosofia grega transcendia todas as oposições e imperfeições aparentes” (p.119). Os impérios de Alexandre e Romano integraram diferentes povos e territórios, o que propiciou que a cristandade conquistasse as proporções mundiais que conquistou. Tarnas diz que, apesar do antagonismo entre os primeiros cristãos e os romanos, a Pax Romana deu à nova religião as indispensáveis liberdade de movimento e comunicação para seu crescimento.

 

“A natureza e as aspirações da nova religião foram decisivamente moldadas pelo contexto greco-romano” (p.120). Tarnas identifica na cristandade uma continuidade histórica das concepções religiosas e metafísicas do mundo clássico. Para muitos dos primeiros filósofos cristãos, a filosofia grega era vista como uma matriz preparada pelo divino para explicar racionalmente a fé cristã. No Evangelho de São João, “No princípio era o Logos”, Tarnas vê, potencialmente, o início da relação entre cristandade e filosofia grega. O platonismo permitia uma explicação metafísica para os mistérios cristãos. Cristo era o Logos (a imagem do Pai transcendental) encarnado. “Através de sua ação redentora, o Cristo intervinha como mediador do acesso da alma à realidade transcendente, satisfazendo a busca fundamental do filósofo” (p122), o que gerou grande interesse entre os estudiosos do classicismo. A importância dada à filosofia grega era tão grande entre os primeiros pensadores cristãos, que Sócrates e Platão eram considerados “cristãos antes de Cristo”. Clemente de Alexandria dizia que a filosofia havia preparado os gregos para Cristo (p.123). De qualquer forma, diz Tarnas, apesar da afinidade metafísica com a filosofia grega, a força da cristandade vinha da herança judaica do deus único e supremo, com seu plano de salvação da humanidade. Para os gregos, a história era cíclica, para os judeus, linear e progressiva, o “plano de Deus” se realiza gradativamente. Para os gregos, deus estava ligado a uma inteligência superior, para os judeus, a uma “vontade regente suprema” (p.124).

 

A epopeia... tem uma linguagem clara, o que certamente é um dos motivos do sucesso. O didatismo é uma de suas maiores qualidades e também um dos defeitos. Recorre em demasia à repetição para ajudar o leitor na compreensão, o que dá ao texto uma circularidade cansativa em determinados pontos. Isso aparece, principalmente, quando Tarnas trata de temas diretamente ligados à filosofia. Nada, no entanto, que tire o brilho geral da obra.

 

O autor consegue explicar, com incrível clareza, como se deram as releituras dos filósofos gregos pelos intelectuais cristãos. Como Agostinho, apropriando-se dos conceitos de Ideia platônicos, ressignificando-os, apresentou-os como o Logos cristão, a palavra atuante de deus. De que maneira manifestações, deuses e cultos pagãos foram negados ou assimilados ao panteão cristão, de acordo com a conveniência da cristandade. Tarnas explica, e bem, essas transmutações do pagão no sagrado cristão. Como se continuou a filosofar, mas com limites mais rígidos, e como a preocupação com o destino espiritual passou a ser mais importante do que o intelecto e o estudo empírico. Mais adiante, quando a intelectualidade cristã atinge a sofisticação de um Tomás de Aquino, o autor, novamente, consegue mostrar ao leitor, com clareza, o resgate de Platão e Aristóteles. Como a inteligência racional, a cognição do homem não precisavam ser reprimidos, pois antes revelavam a existência de um ser mais alto, o deus cristão. Aristóteles resgatado por Tomás de Aquino mostrou que era possível haver autonomia do homem e da natureza, neste mundo, sem que isso significasse a negação do outro mundo. A inteligência era um sinal de que deus queria que o homem buscasse sua perfeição.

 

Pela formação de Tarnas, o livro privilegia uma abordagem filosófica, em detrimento do tradicional enfoque historicista. Esse aspecto é interessante, pois traz frescor ao texto e novos enfoques; porém, em alguns momentos, tem-se a impressão de que os fatos aconteceram regidos por forças exógenas, ou por uma vontade coletiva absolutamente diluída de questões de poder. Exemplo disso é quando o autor trata da decadência da ciência no cristianismo. Ele explica de maneira simplista: “Os primeiros cristãos não sentiam nenhuma urgência intelectual de ‘salvar os fenômenos’ deste mundo, já que o mundo fenomenal não tinha nenhum significado, se comparado à realidade espiritual transcendente” (p.134). Tarnas não trata das proibições da Igreja, a não ser quando fala das contestações ao catolicismo, já na Alta Idade Média. É como se, para o autor, um período importante da afirmação do cristianismo como fé e da Igreja como ordenadora dessa fé, com todas as implicações de poder político e econômico, não tivessem uma importância central. Tarnas afirma, de maneira tangencial, que “a liberdade intelectual, desprovida de importância, em sua essência, foi cuidadosamente limitada”. De que maneira? O leitor não fica sabendo.

 

Por outro lado, a dualidade na visão de mundo cristã é exposta de maneira brilhante por Tarnas, embora aqui também recorra a algumas repetições desnecessárias, fruto, possivelmente, do didatismo excessivo. O autor apresenta uma primeira visão cristã, otimista, com ênfase na revolução espiritual do cristianismo, que libertava cada alma e o mundo inteiro. Cristo morrera para reunir a humanidade, que aguardava seu retorno. Deus era um transbordamento de amor. Esse sentimento vivia em tensão com outro, mais sombrio, a necessidade da permanente vigilância e retidão moral. Cristo retornaria, para esperá-lo era preciso lutar contra o mal. Foi inculcado pela Igreja um sentimento de pecado e culpa, a danação estava sempre à espreita. Iavé, deus implacável do Velho Testamento, estava incorporado no Cristo libertador.

 

Tarnas trata, ainda, de como, com a mediação da Igreja, o Logos divino de inspiração grega cede espaço para o deus judaico que exige obediência irrestrita. O cristianismo primitivo vai mudando, ficando mais “interiorizado, voltado para o outro mundo e filosoficamente elaborado – e também mais institucional, jurídico e dogmático” (p.175). Muito dessa mudança, da institucionalização, da concepção jurídica de um relacionamento da humanidade com deus, afirma Tarnas, provém da herança imperial romana, com suas leis e regulamentos, suas características hierárquicas e autoritárias.

 

Ao tratar do medievo, novamente Tarnas faz arredondamentos que minimizam a censura eclesiástica. Os escritos clássicos, de acordo com ele, não eram lidos porque “as energias intelectuais (...) eram absorvidas em meditação sobre a Sagrada Escritura” (p.195). Para o autor, “as necessidades do outro mundo” reduziam o interesse pelas ciências, pela natureza, pela história, pela literatura, pela filosofia. Parece uma simplificação desproporcional ao fôlego do livro. Quando o livro trata da Idade Média, é onde mais se sente falta de um amparo na história. Tarnas descreve o fim do período feudal, uma Europa que atingiu segurança política, que floresce culturalmente. No entanto, não havia feito referência, anteriormente, a um quadro diferente, à sociedade onde se fortaleceu e firmou o cristianismo. Pressupõe-se que era o contrário desse novo período de florescimento, mas seria interessante localizá-lo historicamente, tratar, mesmo que resumidamente, de como a Igreja influenciou e foi influenciada pela sociedade feudal.

 

Apesar das ressalvas feitas, o livro consegue tratar de um tema complexo de maneira leve, sem ser superficial. O trecho resenhado, que termina com uma rápida descrição da independência incipiente das universidades, da ampliação da curiosidade pelo mundo natural para além de Aristóteles, das bases para o Iluminismo e a Reforma que estavam dobrando a esquina, incitam o leitor a continuar a leitura e a viagem pelos dois mil anos que formaram o modo de pensar do Ocidente de hoje. As dualidades, as dúvidas e as certezas do homem contemporâneo têm raízes muito antigas e profundas e podem ser reconhecidas na obra de Tarnas.

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REFERÊNCIA

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TARNAS, Richard. A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de mundo. Trad. Beatriz Sidou. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p.111-244.

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COMO CITAR ESSE TEXTO

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VARGAS, Rosane. Visão cristã do mundo: do surgimento o questionamento da hegemonia da Igreja. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/epopeiatarnas>. Acesso em: [dia mês. ano].

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