Os estilos da pintura italiana e seus desdobramentos
Um resumo ilustrado do livro Breve mas Verídica História da Pintura Italiana, de Roberto Longhi
Nota inicial: os nomes dos artistas abordados no texto estão com links para suas páginas no site Web Gallery of Art, onde é possível visualizar grande parte da obra de cada um deles, além das que já estão aqui reproduzidas.
Roberto Longhi (1890-1970) é conhecido como um dos maiores expoentes da história da arte italiana. Graduado em história da arte pela Universidade de Turim, ainda jovem começou a escrever para revistas de arte, procurando levar o olhar crítico, normalmente voltado apenas à arte de seu próprio tempo, também para as obras e estilos históricos. Seus estudos sobre Caravaggio e Piero della Francesca se tornaram célebres, trazendo um novo interesse e valorização para esses e outros artistas do passado. Foi ainda um grande defensor de artistas modernos do século XIX e XX, em uma época em que esta arte ainda lutava pelo seu reconhecimento. Deixou uma extensa produção bibliográfica e influenciou outros grandes nomes da história da arte italiana, como Lionello Venturini e Giulio Carlo Argan.
Ainda jovem, aos 23 anos de idade, entre 1913 e 1914, ministrou um curso de história da arte em liceus de Roma e, para tanto, preparou um pequeno manual para ser utilizado por seus alunos. Era um pequeno texto mimeografado, mas que teve ampla circulação, chegando até a ser mencionado por outros autores e pelo próprio Longhi na abertura do primeiro volume de suas Obras Completas. No entanto, só foi publicado em 1980, dez anos após sua morte, por iniciativa de sua esposa Anna Banti (1895-1985), também historiadora da arte e escritora, que tinha muito carinho por esse texto pois conhecera Longhi e fora sua aluna justamente nos cursos para os quais ele escrevera o manual (conforme informações do professor Luciano Migliaccio no posfácio da edição nacional da obra, editada pela Cosacnaify). O texto foi publicado com o título Breve mas verídica história da pintura italiana.
O texto traz uma análise original e entusiasmada do jovem Longhi sobre a pintura italiana e ocidental. Sua análise é essencialmente formalista, ou seja, procura extrair das obras suas principais características visuais, a maneira de ver dos artistas, o uso da linha, da cor, da perspectiva, enfim, de elementos relacionados à visualidade pura da arte. Recusa qualquer espécie de análise psicológica e temática. Ao contrário, muitas vezes condena obras e artistas por se preocuparem demasiadamente com esses elementos em detrimento do equilíbrio visual. Serve-se também com muita parcimônia de questões sociais ligadas à produção artística. Recorre muito pouco à biografia de artistas para explicar características de suas obras.
O resultado é que a leitura do texto de Longhi consegue ser surpreendente até nos dias de hoje, pois onde um leitor irá encontrar um consagrado historiador da arte que afirma, entre outros, que Leonardo da Vinci era mais cientista que artista e que Rafael não produzia pinturas, mas literatura figurada? Para entender colocações como essa, é preciso compreender as ideias sobre arte que Longhi defende no livro e como elas se manifestaram ao longo dos anos na pintura italiana.
Além de ajudar a compreender o próprio Longhi, o entendimento das ideias sobre arte que ele explica nesta obra certamente é de grande valia para o leitor interessado na análise visual de obras de arte históricas. Ainda que não se possa esgotar o entendimento completo da história da arte unicamente no aspecto formal das obras, também não se pode negar que o mesmo é fundamental na construção deste entendimento. No mínimo, servirá para educação do olhar do leitor e, esse mínimo, já o leva muito longe.
OS ESTILOS
Ainda antes de adentrar nas ideias de arte de Longhi, é necessário fazer um esclarecimento que o próprio autor coloca em sua obra. Para ele, “a arte não é uma imitação da realidade, e sim uma interpretação visual desta” (p. 7). Segundo ele, isso vale tanto para literatura quanto para as artes figurativas, que, no entanto, se servem de diferentes campos de realidade: ao poeta, interessa a essência psicológica; ao pintor, a essência visual. O pintor trabalha com sua visão, que é diferente da visão cotidiana utilizada no dia a dia para deslocar-se e enxergar em volta. Trata-se de seu modo pictórico de ver. De fato, em vários momentos do livro é possível se deparar com a crítica de Longhi ao que ele chama de realismo, ou seja, a busca pela imitação pura e simples de efeitos da realidade em detrimento do olhar pictórico.
Estilo colorista puro
Partindo para a análise dos estilos, talvez seja conveniente iniciar pelo estilo colorista puro, uma vez que ele está associado à arte bizantina, que precedeu aos grandes artistas italianos que trabalharam a partir dos Trezentos (século XIV), tentando assim manter um encadeamento mais ou menos cronológico. Mais ou menos cronológico porque Longhi, na verdade, inicia sua análise ainda na Antiguidade, com os mosaicos romanos, que já procuravam um sentido de representação de espaço plástico tridimensional que, no entanto, só retornará à arte italiana a partir do século XIV.
O estilo colorista puro, entretanto, é uma espécie de antítese dessa proposta, conforme afirma Longhi: “não se aperceber absolutamente da existência plástica das coisas, como se nunca houvessem penetrado no espaço, ver e exprimir o mundo como um tapete aberto de superfícies variegadas, e nada mais – eis a primeira intenção do pintor colorista” (p.11). Para realizar essa visão, o estilo colorista procura abolir ao máximo o uso da linha, aproximando as superfícies de cor, uma vez que “a linha nos distrai inevitavelmente da cor” (p. 11).
Longhi coloca que o estilo colorista puro apareceu na Itália no século VI, citando como principal exemplo os mosaicos do Imperador Justiniano e da imperatriz Teodora, ambos na Basílica de San Vitale, na cidade de Ravena. É o estilo colorista bizantino. “O espaço é abolido, ou pelo menos convertido em espaço de duas dimensões. Por conseguinte, tudo é superfície e aproximação de superfícies, e todas as superfícies são cores aprazíveis” (p. 30). Outro exemplo citado é o mosaico do Bom Pastor, em Sant'Apollinare in Classe, também em Ravena, chamando a atenção para a busca do artista por evocar um plano bidimensional de um espaço côncavo.
Longhi: “Os cortejos dos fiéis estão virados de frente, parados no limiar da ribalta pictórica. O espaço cai detrás deles, e os próprios corpos não são formas, mas fantasmas aplainados e superficiais. Todos achegam as suas longas túnicas de Bizâncio, juntando-as como faixas unidas no sentido da altura; as faixas cintilam de diversas, calorosas e preciosíssimas cores; ao longe, rutilam indistintas; de perto, distinguem-se as cascatas de ágatas e safiras: as incrustações de cruzes zonadas, de broches e pedras preciosas. [...]
Tudo é superfície colorida e como tal é fruído, não devemos pedir solidez aos corpos, nem tentar fazê-los girar; ficaríamos decepcionados. Contentemo-nos em percorrer com os olhos as zonas admiravelmente policromáticas, mordiscando a carnuda substância da cor” (p. 30-31)
Corte de Justiniano, c. 540
Mosaico
Abside de San Vitale, Ravena
Fonte da imagem: Wikipedia
Corte de Teodora, c. 540
Mosaico
Abside de San Vitale, Ravena
Fonte da imagem: Wikipedia
Longhi: “Mas vejam o que ocorre. Na concha da abside, a representação tenta eludir a concavidade real e torná-la plana. As distâncias não se pospõem, mas se sobrepõem“ (p. 31).
O Bom Pastor, séc. VI
Mosaico
Sant'Apollinare in Classe, Ravena
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
O estilo puramente colorista, entretanto, não produziu muitas obras-primas na Itália, uma vez que, segundo Longhi, ele representa uma tradição oriental que dificilmente prevaleceria sobre a tradição grega, na qual predomina o estilo linear. O que acaba ocorrendo é que “o estilo linear de tradição grega, uma composição tão rítmica que às vezes beira o floralismo, vem a se combinar – não se fundir – com o colorismo bizantino” (p. 32). A esta combinação ele chama estilo linear greco-bizantino. Como exemplo, Longhi cita o mosaico das Virgens Ofertantes, em Sant’Appolinare Nuovo, ainda na cidade de Ravena.
Longhi: “A cor também é aprazível, e é cor bizantina; mas a primeira impressão é de um ritmo suavemente desarticulado; o que demonstra [...] que a linha, por mais débil que seja, distrai-nos da cor” (p. 32)
Mosaico das Virgens Ofertantes (detalhe), séc. VI
Mosaico
Sant’Appolinare Nuovo, Ravena
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
O período da arte românica (séculos X a XIII) é rapidamente citado por Longhi como uma época de predomínio da escultura, na qual se observa uma plasticidade rude e brutal (p. 33). Somente nos Duzentos (século XIII), a corrente colorista voltaria, representada principalmente por Cimabue (c.1240–1302), não se apresentando mais em sua pureza original, mas conjugada com a linha floral, que se verá a seguir.
Estilo linear
Entretanto, antes de abordar especificamente a linha floral, cabe colocar as considerações de Longhi sobre o estilo linear em geral. O estilo linear é o modo ver no qual a realidade é expressa visualmente sob forma de linhas e contornos. “Vocês entendem quão longe do realismo se encontra um artista que elimina do complexo das aparências tudo que não pode exprimir sinteticamente por intermédio de linhas”, diz Longhi (p. 8). O autor identifica ainda dois tipos diferentes de estilo linear:
a) Linha funcional: linha usada com a finalidade de exaltar a energia vibrante dos corpos, colocando o impulso e o deslocamento da matéria física incluída dentro do contorno. Representa energia, força, movimento.
b) Linha floral: ocorre quando as linhas formam relações entre si, ritmos, correspondências de ondulações, formando verdadeiros arabescos. A energia da linha funcional não é abolida de todo, mas transformada em ondulações quase involuntárias.
Linha floral
A linha floral é também conhecida como linha gótica. Apesar de Longhi citar Cimabue, ele não faz maiores análises do artista em vista do pouco que restaria de sua obra. Dessa forma, o estilo de linha floral teria se iniciado na pintura italiana em Siena, com Duccio di Buoninsegna (1255-1319). Como no estilo colorista bizantino, a pintura de Duccio não se propõe à criação de um espaço tridimensional e à inserção de figuras nele. No entanto, a pintura apresenta, em toda sua superfície, a representação de pessoas e coisas feitas a partir de linhas que criam relações e ondulações, em harmoniosos arabescos de um entrelaçamento quase vegetal. "Tudo que nos parece deficiente como forma e como espaço ressurge, e pela mesma razão, soberanamente agradável como linha floral. Como tudo agora aparece claro e deliberado!" (p. 35).
A obra-prima de Duccio é o retábulo conhecido como La Maestà (1308-11) e, deste retábulo, Longhi cita o painel central, uma peça com mais de dois metros de altura. “Os santos e os anjos não escoltam nem ocupam posição no espaço, mas, por essa mesma razão, quão habilmente decoram toda a superfície do painel, de cima para baixo, com um lento desdobramento a partir do vértice da cúspide central!” (p. 34-35).
Duccio di Buoninsegna (1255-1319)
Maestà (Virgem com Santos e Anjos), 1308-1311
Têmpera sobre madeira, 214 x 412 cm
Museo dell'Opera del Duomo, Siena
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi: Quão inevitavelmente comprimidos pelo obliquamento da cornija os anjos inclinam as cabecinhas sobre o espaldar do trono; quão inevitavelmente estendem-se inteiras as suas mãos afiladas; quão inevitavelmente todas as faces se equilibram num suavíssimo ovalado, todos os cabelos fluem em finos feixes ondulados, ou com força convalescente tentam no alto da cabeça escapar ao contorno erguendo-se como pequeninas flanas!
E com que facilidade, enfim, sob a impressão da linha que domina o todo, esquecemos a cor, que no entanto se difunde do ouro ao fundo para o ouro ruborizado das faces e forma, ainda, um motivo de simplicidade bizantina na expansão alada dos discos dourados das auréolas! [...] (p. 35).
Duccio di Buoninsegna (1255-1319)
Maestà (Virgem com Santos e Anjos) (detalhe), 1308-1311
Têmpera sobre madeira, 214 x 412 cm
Museo dell'Opera del Duomo, Siena
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Embora Longhi estabeleça que a linha floral se iniciou com Duccio, o autor considera que o estilo atingiu seu apogeu com outro artista: Simone Martini (1285-1344). Herdeiro de Duccio, Simone Martini é apresentado com uma de suas mais conhecidas obras, o tríptico da Anunciação e Dois Santos da Galleria Uffizi.
Longhi: Na parte de baixo do espaço central, uma forma delgada, o vaso de lírios, distribui as hastes de modo a coordenar o andamento de toda a composição linear; no alto, a pomba estende suas grandes asas e, em toda volta dela, os querubins entrecruzam ritmicamente as suas próprias. O anjo anunciador tende a sair de sua divisória, mas as asas ali continuam, ainda erguidas após o voo, e o ar ainda agitado ondula suavemente o manto, antes que este se assente. A Virgem obedece plenamente ao ritmo; recua, contorce-se e assim ergue-se ainda mais para a cúspide que a sobranceia; do corpo torcido desce um manto leve que se rompe em suaves festões harmoniosos; da mesma forma, pelo espaldar da cadeira desce em festões menores o tecido de ouro forrado de negro. (p. 42)
Simone Martini (1285-1344)
Anunciação e Dois Santos, 1333
Têmpera sobre madeira, 184 x 210 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: Wikipedia
Longhi ainda chama a atenção para a cor do tríptico, com a aproximação ousada entre o fundo dourado (para os pintores góticos, um sucedâneo ingênuo do sol) e azul-escuro do manto da Virgem, entre outros detalhes. No entanto, apesar de encantador, não é um colorismo absoluto ou dominante como nos mosaicos de San Vitale, pois é distraída pela linha: “[...] zonas largas de cores se estreitam subitamente em finos regatos lineares e perdem o valor de superfície” (p.43).
Outra obra de Simone Martini comentada por Longhi é um afresco de Santa Clara localizado na Capela São Martinho, na Igreja Inferior da Basílica de São Francisco, em Assis. O autor chama a atenção para a espiritualidade que emana do afresco da Santa, um efeito atingido essencialmente pelo uso do estilo linear floral.
Longhi: Por três vezes descem, volteiam e recaem de sua cabeça três pequenas cascatas lineares – o escapulário, o capuz sobre os ombros, o manto no antebraço delgado. Jamais se criou com a linha um tipo de espiritualidade mais pálida e suave do que esse rosto, onde, em seu nobilíssimo ovalado, da raiz sanguínea dos lábios comprimidos sobe a linha nasal que se reparte nas duas síliquas dos olhos semicerrados e depois nas trêmulas arcadas das sobrancelhas. E sob a suave torção do pescoço aquela reentrância côncava encantadoramente falha das linhas dos tecidos sobre o colo! (p. 43).
Simone Martini (1285-1344)
Santa Clara (detalhe), 1320-1325
Afresco, 67 x 55 cm (tamanho do detalhe)
Capela São Martinho, Igreja Inferior da Basílica de São Francisco, Assis
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Duccio e Simone são expoentes da chamada escola sienense dos Trezentos italiano. Uma escola caracterizada pelo uso decorativo da linha, ondulações, formas delicadas e espaço bidimensional. Enquanto isso, em Florença, surgia um estilo completamente diverso. Portanto antes de prosseguir no estudo do estilo linear e avançar para a linha funcional, cabe uma análise do estilo plástico.
Estilo plástico
O estilo plástico, ao contrário do linear, exprime a convicção corpórea das figuras, entendidas como massas distintas que se revelam pela incidência de jorros de luz e vórtices de sombra, acentuando seu relevo. Nesse estilo, os corpos são concebidos como sólidos e maciços, ocupando lugar no espaço, despidos de particularidades, não se opondo à intenção simplificadora do claro-escuro (p. 9).
O estilo surge com Giotto di Bondone (1267-1337). Na pintura de Giotto, “o espaço inclui as formas, as formas por sua vez determinam exatamente um volume compacto de espaço: espaço e forma se sustentam mutuamente, são a mesma coisa” (p. 36). A composição de Giotto apresenta “uma humanidade corpulenta, pesada, no entanto solene e grave, de gestos e trajes simples e robustos” (p. 37).
Longhi: Aqui vocês devem apreciar principalmente a singela e sólida determinação do espaço segundo a forma nele contida. Como uma barraquinha simples e adequada! A serva no quartinho, a Virgem imponente no aposento. Que nitidez de paredes nuas, que sobriedade de detalhes determinantes! Certamente não é a história dos usos e costumes, tão cara aos realistas nórdicos, que há de interessar a Giotto.
Mas olhem ainda a figura da serva fiando, uma das criações mais perfeitas de Giotto. Que simplicidade de poses distendidas com o admirável acompanhamento dos tecidos! A veste solta que se estende dos joelhos aos pés, numa única prega, a cintura alta que aprisiona e contém a manga, embotando o torso largo! (p. 38)
Giotto di Bondone (1267-1337)
Anunciação à Sant'Ana, 1304-1306
Afresco, 200 x 185 cm
Cappella Scrovegni, Pádua
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi faz ainda uma interessante análise sobre o que o estilo de Giotto não é capaz de exprimir. Segundo ele, a solidez dos corpos, própria do estilo plástico, emana um sentimento de energia moral, mas pode vir a ser menos adequada na representação de sentimentos refinados, graça e gentileza. Essa situação fica evidente, segundo Longhi, na série de Virtudes e Vícios também pintada por Giotto na Capela degli Scrovegni, em Pádua. Os Vícios, símbolos de violência e brutalidade física, estão bem representados, assim como algumas Virtudes de sentido terreno, como a Fortaleza. No entanto, o resultado é menos feliz na representação da Fé e da Temperança, que possuem um sentido mais espiritual e menos corpóreo (p. 39). A espiritualidade, segundo Longhi, é um sentimento melhor representado pela linha floral.
Longhi: A Fortaleza, eis aí pelo menos uma Virtude adequada a Giotto pintor – a matrona encouraçada atrás da proteção de seu escudo inexpugnável.
Giotto di Bondone (1267-1337)
Fortaleza, 1306
Afresco, 120 x 55 cm
Cappella Scrovegni, Pádua
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi: Mas que fracasso, por outro lado, nessa Temperança e nessa Fé, demasiado plásticas para serem temperantes e fiéis, demasiado descarnadas para serem belas em sentido giottiano!
Giotto di Bondone (1267-1337)
Temperança, 1306
Afresco, 120 x 55 cm
Cappella Scrovegni, Pádua
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Giotto di Bondone (1267-1337)
Fé, 1306
Afresco, 120 x 55 cm
Cappella Scrovegni, Pádua
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
O herdeiro de Giotto é Masaccio (1401-1428), que atuou em Florença. Segundo Longhi, ele muitas vezes é confundido com outro pintor, Masolino (1383-1447), porque esteve em sua escola e atuou com ele em muitas obras. No entanto, o estilo de ambos não pode se confundir: enquanto Masaccio é o primeiro artista plástico de Florença, Masolino é o último artista da linha floral, que acidentalmente aparece na arte florentina.
Longhi apresenta vários afrescos em que os dois artistas trabalharam juntos, identificando a diferença de estilos em partes distintas das pinturas. Um deles é um afresco da série sobre a vida de São Pedro, na Capela Brancacci, de Santa Maria del Carmine, em Florença.
Longhi: O espaço é formado por arquiteturas sólidas, à maneira de Giotto, edifícios e pessoas se destacam por meio de uma luz violenta, ainda mais violenta pelo claro-escuro giottiano, que desce visivelmente de lado. Sob o pórtico à direita, Tabita cruza os braços plasticamente envolvida e construída pelos panos ajuntados; os espectadores, despertados pela luz violenta, violentamente se assombram. Pedro e o discípulo se reúnem no mesmo bloco vertical de matéria. Quem pode estar trabalhando aqui, e na cena do paralítico à esquerda, a não ser Masaccio, o herdeiro enriquecido de Giotto? Mas vem a vontade de perguntar àqueles dois rapazolas passeando lépidos no centro o que eles têm a ver com o resto. Saiam daqui! Não é hora de roupas adamascadas com estamparias, nem de curiosidade pueril rósea e beata; ou seja, não é hora de cor e linha, é hora de plasticidade. Quem colocou no centro, então, essas duas reminiscências incorpóreas do goticismo? Ninguém, a não ser Masolino.(p. 38)
Masaccio (1401-1428) e Masolino (1383-1447)
Cura do Aleijado e Ressurreição de Tabita, 1424-1425
Afresco
Cappella Brancacci, Santa Maria del Carmine, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Linha funcional
A linha funcional surge na pintura italiana com o artista Andrea del Castagno (1390-1457). Castagno rejeita o claro-escuro de Masaccio e busca suas representações no estilo linear, mas não a linha ondulante de decorativa do estilo floral: “linha sim, mas robusta e nervosa; linha que deixe o homem ser o que é, e não o reduza a um caniço flexível; linha enfim que, mesmo deixando-o viver energicamente, não se reduza a uma tarefa realista, mas encontre uma possibilidade de estilo inteiramente novo, justamente exaltando, acentuando e também transfigurando em todos os corpos e em todas as formas esse sendo renovado de difusa e invencível vitalidade” (p. 50-51).
É interessante observar como Longhi reiteradamente rejeita a representação que procura efeitos realistas, própria da pintura flamenga dos irmãos Van Eyck, por exemplo. Segundo ele, “as réplicas são sempre inúteis, [...] a arte certamente deve ser vida, mas uma vida diferente, em si mesma. Isso, somente a arte italiana entendeu, e todas as tendências artísticas europeias, sem nenhuma exceção, provieram da Itália, pelo menos na pintura” (p. 47).
Longhi: Vejam, por exemplo, Pippo Spano, chefe de mercenários. Uma energia humana salta dessa criação, mas não mais expressa com uma sensação quase negativa de peso irreversível como em Masaccio; pelo contrário – e justamente por isso eu disse “salta” -, tudo é vibração perfilada com um contorno extremamente enérgico. Com que vitalidade o corpo consegue inflar a fímbria da couraça; que impulso, que curvatura plena! Dir-se-ia que o princípio de tensão da força impressa na espada é o símbolo de todo o arcabouço inflectido no corpo retesado. Enfim, como a luz, em vez de esquadrejar como em Masaccio, por vezes pretende simplesmente realçar o perfil da forma com um arabesco luminoso nas margens! (vejam, por exemplo, a perna direita). O mesmo estilo se imprime no rosto, flocos alcatroados de cabelos, curva rangente da mandíbula, corte sinuoso da boca, rugas em forma de garras!
Andrea del Castagno (1390-1457)
Pippo Spano, c. 1450
Afresco transferido para madeira, 250 x 154 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Apresentados os estilos lineares (linha floral e linha funcional) e o estilo plástico, cabe referir que Longhi identifica ainda um estilo que funde os dois, chamado estilo plástico-linear. No entanto, aqui optou-se, por questões cronológicas, por abordar este estilo mais adiante quando se abordar Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonarroti. Por enquanto, seguem dois estilos associados ao uso da perspectiva.
Estilo perspectivo de forma
Essa é a tendência artística que se ocupa da representação da situação dos corpos no espaço, ou seja, de fazer o espectador sentir os corpos regularmente dispostos em um cubo de espaço imaginário que se abre a partir da tela. Dessa forma, a visão perspectiva de forma imagina uma espécie de pirâmide visual que tem por base a tela e por foco o centro do horizonte. Este espaço está dividido em muitos planos ideais que, mesmo não representados, estão simbolizados no efeito produzido sobre a forma, que assim resulta nivelada e disposta ao longo de certos planos, tal como ocorre com uma massa arquitetônica (p. 10).
Longhi cita como obra-prima deste estilo a Virgem Anunciada do pintor Antonello da Messina (1430-1479). A preocupação de Antonello é principalmente com a forma, pensando-a em termos de volumes ideais que tendem, em essência, à esfera e ao cilindro, sem cair em coincidências singelamente geométricas (p. 96).
Longhi: E temos a Virgem Anunciada de Palermo, a pirâmide humana. É o gesto arquitetônico da Virgem que realiza o milagre esticando o manto com a mão esquerda, de modo a se incluir em uma pirâmide absoluta, e girando sobre um eixo cristalino invisível, motor imóvel, até cunhar em nossa direção a aresta que, iniciando-se no vinco da testa, desliza pela aresta facial e desce além do ângulo do tecido até a proeminência do genuflexório. Mas a direita avança inclinada, tateando cautelosamente o limite possível do volume; encontrando-o, detém-se, ao passo que o livro, contraposto, vibra no ar o fio cortante da sua folha alva. No interior, sobre a coluna do pescoço assenta-se suavemente o oval do rosto, sobre o qual giram, como sobre um planeta, largos diagramas de sombras regulares (p. 98).
Antonello da Messina (1430-1479)
Virgem Anunciada, c. 1476
Óleo sobre madeira, 45 x 34,5 cm
Galleria Regionale della Sicilia, Palermo
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Estilo de síntese perspectiva de forma e cor
Ainda que supostamente mais complexo do que o estilo perspectivo de forma, pois também se preocupa com o uso da cor, este estilo parece ter surgido um pouco antes em termos cronológicos. Longhi o define como a tentativa de exprimir sinteticamente, ou seja, produzindo no espectador uma fruição unitária, a forma e a cor. Esse objetivo certamente não pode ser atingido pelo uso da linha, que distrairia o espectador da cor, e sim pela aliança entre a cor e a forma em planos, como no estilo abordado anteriormente. A forma em planos não tem contornos de valor linear e sim sintéticos, e como tais, indiferentes. Trata-se assim de dispor nos planos, onde o claro-escuro fica reduzido ao mínimo pela claridade solar e aberta (p. 12). Segundo Longhi, “todas as coisas irão se subordinar dentro dos planos (forma) variegados (cor), de modo a dotar a obra da inexplicável magia de parecer, ao mesmo tempo, máxima profundidade (forma) e máxima superfície (cor)” (p.12).
O estilo surgiu com o pintor Paolo Ucello (1397-1475). Se, no estilo da linha funcional, Andrea del Castagno apresenta uma expressão de vida em movimento e transitória, Paolo Ucello nos dá uma sensação de forma fixa, impessoal e arquitetônica, ou seja, a forma perspectiva (p. 52).
Longhi: O espaço, vocês podem sentir que é conquistado com tanta maior segurança quanto mais visível é o esforço. Mas vocês vêem que ele se exprime não mais com o claro-escuro, e sim com a simples convergência das lanças despedaçadas para o solo, para o foco da perspectiva, com o simples aparecimento das encostas dos campos pálidos no alto, onde as pessoas de repente se transformaram em formigas. Como se exprime, em particular, a redondez das formas individuais? Certamente não com o claro-escuro, que se reduziu a nada, mas por meio de planos levíssimos que conferem à margem dos corpos uma nitidez impessoal de retas ou curvas amplas e abertas que nos convencem por si sós de conterem uma forma monumental. Observem alguns detalhes: por exemplo, como os cavalos se clivam em planos alabastrinos, como se estivessem empalhados! No corcel branco à esquerda, vocês podem ver, as patas de trás e os cascos estão nitidamente cortados como formas cúbicas por dois leves planos, um de luz e outro de sombra (p. 53).
Paolo Ucello (1397-1475)
A Batalha de São Romano, c. 1438-1440
Têmpera sobre madeira, 182 x 320 cm
National Gallery, Londres
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi apresenta também como exemplo deste estilo o pintor Domenico Veneziano (1410-1461), muito embora considere que, na pintura analisada, exista um estilo na parte arquitetônica da obra e outro nas figuras humanas.
Longhi: Neste retábulo dos Uffizi, por exemplo, vocês veem que, por meio da perspectiva, a tripartição gótica do tríptico, totalmente superficial, transformou-se em tripartição do espaço, em profundidade. No entanto, a claridade das cores (isto é, a abolição do claro-escuro) e a simplicidade do enquadramento perspectivo fazem que as partes mais afastadas, delicadamente tingidas de cores tênues e diáfanas, se acerquem – como cor – das mais próximas. Isso na arquitetura, pois se vocês passarem para as figuras logo verão que Domenico Veneziano, tal como Andrea del Castagno, tampouco tem coragem de tornar a forma monumental, mesmo porque sua tendência a nos dar uma psicologia penetrante nos tipos refinados e exangues, sumamente espirituais, só poderia de concretizar, como de fato se concretiza, por meio da linha, que nele está entre a floral e a funcional, ainda que se aproximando mais desta última, mas sem a violenta torção de Andrea del Castagno” (p. 55).
Domenico Veneziano (1410-1461)
Virgem e o Menino com Santos, c. 1445
Têmpera sobre madeira, 209 x 213 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: Wikipedia
Apresentados os estilos, passa-se agora a uma análise do desdobramento dos mesmos ao longo da história da arte da pintura italiana, citando os principais artistas associados a cada um deles.
DESDOBRAMENTO DOS ESTILOS
Desdobramentos da linha floral
Segundo Longhi, depois de Simone, o estilo da linha floral se empobrece, primeiramente por não seguir sua própria estrada, mas tentar mesclar-se com o estilo plástico, trazendo prejuízo a ambos. No entanto, no final dos Trezentos e início dos Quatrocentos, o estilo ganha novo fôlego, “ainda que muitas vezes se esterilize em minúcias narrativas e episódicas” (p. 44). Longhi cita os seguintes artistas:
- Sassetta (Stefano di Giovanni) (1392–1450-51): atuava em Siena e foi considerado por Longhi o mais artista dos floralistas de sua época, embora muitas vezes tenha se perdido em digressões episódicas.
Sassetta (Stefano di Giovanni) (1392-1450-51)
Casamento de São Francisco com a Pobreza, 1437-44
Painel, 88 x 52 cm
Musée Condé, Chantilly
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Gentile da Fabriano (1370-1427): atuou nas Marcas e era “um deleitoso linearista, mas frequentemente fiel demais ao detalhe, amante demais do costume, do fausto ingênuo, do douramento de tudo” (p. 44).
Gentile da Fabriano (1370-1427)
Adoração dos Magos, 1423
Têmpera sobre madeira, 300 x 282 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Pisanello (1395-1455): Longhi ressalta que muitas vezes seu trabalho é prejudicado por preocupações com a narrativa e com um detalhismo exagerado. Atuou em Verona.
Pisanello (1395-1455)
São Jorge e a Princesa de Trebizonda (lado direito), 1436-38
Afresco, 223 x 620 cm (afresco inteiro)
Capela Pellegrini, Sant'Anastasia, Verona
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Outros artistas citados por Longhi: os irmãos Zavattari (Cristoforo e Franceschino), que atuaram em Milão no início do século XV; Jacopo Bellini (1396-1470), que atuou em Veneza e era pai de Giovanni Bellini; Michele Giambono (1400-1462), que também atuou em Veneza; os irmãos Salimbeni , Lorenzo (1373/74-1416/20) e Jacopo (1370/80-1426), que atuaram nas Marcas, nascidos na comuna de San Severino Marche e citados por Longhi como os irmãos Da Sanseverino.
Hesitações artísticas na primeira metade dos Quatrocentos
Longhi refere alguns artistas bastante conhecidos que, segundo ele, não adotaram, por diversas razões, um estilo único a partir dos artistas que os antecederam, mas que tentaram incorporar em suas obras características de vários estilos ao mesmo tempo.
- Fra Angelico (1395-1455): Longhi refere que Fra Angelico era um pintor tímido, que compreendeu os estilos mas não tomou partido, por amar demais cada um deles: amava demais as cores góticas para abandoná-las, amava as sinuosidades florais dos sienenses, mas também gostava do claro-escuro e da perspectiva (p.57). Dessa forma, é possível identificar na obra de Fra Angelico a presença de vários desses elementos ao mesmo tempo, com uma compreensão superficial de cada um deles, o que leva a obras marcadas por uma certa ingenuidade infantil, mas que não se configura essencialmente como problemática, uma vez que também proporciona um tom de leveza descompromissada que tem seu próprio encanto.
Longhi: Na Anunciação de Cortona: curva floral de asas angelicais, rosto de flama rosada, corpo que ainda quer nos convencer de uma certa solidez e com a túnica recaindo nos flancos, pequeno pórtico de açúcar com uma perspectiva agradavelmente apressada, noite gótica na terra de fábula onde Adão e Eva brincam de ser expulsos pelo anjo do Paraíso terrestre!
Fra Angelico (1395-1455)
Anunciação, 1433-34
Têmpera sobre madeira, 150 x 180 cm
Museo Diocesano, Cortona
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- Francesco Pesellino (1422-1457): também se caracteriza pela compreensão ingênua de Fra Angelico que, da mesma forma, leva a obras marcadas por uma expressividade romântica e amena.
Francesco Pesellino (1422-1457)
Sacra Conversazione, 1455-57
Tempera sobre painel, 176 x 173 cm
Musée du Louvre, Paris
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- Filippo Lippi (1406-1469): considerado por Longhi um pintor mais vigoroso que Fra Angelico e Pesellino, sendo que, “seu aparente vigor, mais do que artístico, é psicológico e nada mais do que o reflexo da grosseria de seu temperamento, tal como se manifesta em vários episódios conhecidos” (p. 59). Interessante observar que, embora mencione esses episódios da vida de Lippi, Longhi não os conta, não querendo perturbar a análise artística com digressões biográficas. Lippi é considerado por Longhi um artista que teve uma compreensão parcial do estilo plástico.
Longhi: E finalmente, para citar uma de suas melhores obras, a Nossa Senhora e o Menino com Dois Anjos nos Uffizi, onde felizmente um elemento - a linha funcional - consegue prevalecer e imprimir um caráter unitário à obra. E
Filippo Lippi (1406-1469)
Nossa Senhora e o Menino com Dois Anjos, c. 1445
Tempera sobre madeira, 196 x 196 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Outro artista citado por Longhi: Benozzo Gozzoli (1421-1497), mencionado como seguidor de Fra Angelico.
Desdobramentos do estilo plástico
Longhi considera que o estilo plástico, iniciado com Giotto e continuado por Masaccio, não apresentou grandes seguidores até Michelangelo unificá-lo com a linha funcional através do estilo plástico-linear (que será visto mais adiante). De fato, os poucos artistas mencionados por Longhi associados a este estilo estão entre os mais criticados por ele no seu texto.
- Domenico Ghirlandaio (1449-1494): considerado por Longhi o “mais grosseiro vulgarizador” de Masaccio (p. 60). O que incomoda Longhi na obra de Ghirlandaio é o seu realismo, associado pelo autor um “fotografismo” destinado apenas ao deleite de quem reconhecia a si mesmo e aos amigos nas obras. O interesse na obra de Ghirlandaio, dessa forma, parece mais destinado a uma espécie de história de costumes: personagens, roupas usadas, cabelos, modo de se barbear etc. Longhi considera que seu realismo deve ter sido influenciado pela pintura flamenga.
Longhi: Muitas vezes há definitivamente um realismo tão intenso nos produtos desse artista que é o caso de remetê-lo à influência flamenga, como [...] naquele banalíssimo retrato do velho com o nariz que parece um pepino.
Domenico Ghirlandaio (1449-1494)
Um velho e seu neto, c. 1490
Tempera sobre madeira, 62 x 46 cm
Musée du Louvre, Paris
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Outro artista citado por Longhi: Cosimo Rosselli (1439-1507), também considerado um vulgarizador de Masaccio, pintou alguns afrescos na Capela Sistina.
Desdobramentos da linha funcional
O estilo linear baseado na linha funcional parece ter tido um destino mais favorável, incluindo artistas consagrados e elogiados por Longhi.
- Alessio Baldovinetti (1425-1499): não abandona de todo o colorismo, mas o uso da linha em sua obra é funcional, apresentando uma obra de forma mais refinada do que Andrea del Castagno.
Alessio Baldovinetti (1425-1499)
Anunciação, 1447
Tempera sobre madeira, 167 x 137 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Antonio del Pollaiollo (c. 1420-1498): apresenta um refinamento ainda maior que Baldovinetti, embora mais expressivo e de pouca corporeidade. Este efeito, Pollaiollo “quase sempre atinge com uma linha funcional de sinuosidade admiravelmente eficaz” (p. 63).
Longhi: Ali o contorno se torna tão visível e expressivo a ponto de poder dispensar a modelagem e conseguir exprimir o desabrochar, o intumescer, o prender, o ceder da matéria corpórea, sua miraculosa gibosidade cheia de saliências, meandros e retornos imprevistos. O movimento, vocês entendem, seria nesse caso o de flectir, não o de quebrar. De fato, vocês não encontrarão um ângulo sequer, mas sempre uma curva preênsil e viva (p. 63).
Antonio del Pollaiollo (c. 1420-1498)
Hércules e Anteu, c. 1478
Tempera sobre madeira, 16 x 9 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Piero del Pollaiollo (1441-1496): irmão de Antonio del Pollaiollo, trabalhou com ele em algumas obras, que Longhi considera que estão entre as obras de Antonio que não merecem muita atenção, pois “vocês logo percebem que basta uma ninharia para que o contorno sinuoso perca sua vitalidade e se torne inexpressivo e desengoçado” (p. 64). Piero busca em sua obra, através do claro-escuro, um efeito realista que desagrada Longhi.
Longhi: o acréscimo de um claro-escuro frouxo e realista descarna os membros num vulgar anatomismo (p. 64).
Piero del Pollaiollo (1441-1496)
Coroação da Virgem, c. 1483
Tempera sobre painel
Sant'Agostino, San Gimignano
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Andrea del Verrocchio (1435-1488): Longhi comenta que o mesmo anatomismo que caracteriza Piero del Pollaiollo pode ser percebido também em Verrochio, embora um pouco mais refinado. Para exemplificar, cita sua conhecida obra, O Batismo de Cristo, pintada em parceria com seu célebre aprendiz, Leonardo da Vinci. Leonardo teria pintado o anjo de cabelos longos no canto inferior esquerdo da obra.
Andrea del Verrocchio (1435-1488)
O Batismo de Cristo, 1472-75
Óleo sobre madeira, 177 x 151 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Sandro Botticelli (1445-1510): artista que leva a linha funcional a suas maiores alturas, de acordo com Longhi. Botticelli consegue fazer um uso rítmico e decorativo da linha funcional, pensando em uma composição mais ampla e conseguindo ir além de Antonio del Pollaiollo, que imprimia estes efeitos apenas nas figuras isoladas. A composição de Botticelli apresenta organicidade e movimento, fugindo de tendências realistas, sua linha se depurando com o tempo de qualquer esfumaçamento de claro-escuro. O artista também, por vezes, recusa o recorte retangular e quadrado, em favor do oval ou do quadro cambotado (em arco).
Longhi: Algumas palavras sobre as duas obras mais famosas: Vênus surgindo mar [Nascimento de Vênus] e A Primavera. Nelas vocês podem entender o equilíbrio que Sandro conseguiu alcançar entre a exaltada vibração do corpo individual e a concomitância total da linha num ritmo. Com efeito, se vocês observarem Vênus logo perceberão como é claro o acompanhamento crepitante das figuras laterais ao aparecimento central da deusa. Mas longe de vocês comparar essa linha à algosidade subaquática da Vênus de Simone Martini. Não há como não se deleitar com a criação deste corpo superior – no ar marítimo esverdeado – expresso sem claro-escuro por uma nota de contorno solitária e contínua como um agudíssimo “trinado de violino” e pelo timbre fundido como “de soprano” num solo. Um solo de linha funcional, eu diria (p.67).
Sandro Botticelli (1445-1510)
O Nascimento de Vênus, c. 1485
Tempera sobre tela, 173 x 279 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Sandro Botticelli (1445-1510)
Primavera, c. 1482
Tempera sobre painel, 207 x 319 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi ainda faz uma interessante observação sobre a psicologia de Botticelli e a sensualidade observada em sua obra. “A sensualidade doentia de Botticelli – dizem, entre muitas outras coisas: tudo isso não é senão o fruto inevitável da linha funcional rítmica, e nada mais; e provavelmente é um fruto involuntário, como sempre acontece cos os pintores puros” (p. 69).
- Andrea Mantegna (1431-1506): Longhi considera que Mantegna usa a linha funcional para exprimir uma ideia da figura humana como estátuas de mármore e bronze, concepção essa que pode ter se criado a partir do seu aprendizado de desenho feito a partir das estátuas de Donatello. Segundo ele, a compreensão dessa característica é fundamental para compreender o mundo agradavelmente fantástico de Mantegna.
Longhi: Mais uma fantasia de terreno escalavrado pelos aluviões, profundamente recortado pelos assentamentos tectônicos, gélido com um inverno fantástico que enrijece até as curvas das estradas e cria os fungos nos nós das árvores pungentes, ornado na encosta árida da montanha de uma Jerusalém de mármore pentélico idealizada pela sua imaginação de antiquário romântico. E a um Cristo de quartzo se apresenta uma fila de anjos recém-saídos do fundo de um antigo sarcófago (p. 70).
Andrea Mantegna (1431-1506)
Agonia no Horto, c. 1459
Tempera sobre painel, 63 x 80 cm
National Gallery, Londres
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi: Finalmente, depois de um novo contato em Roma com o pintor perspectivo Melozzo, ele logra no famoso Cristo morto de Brera um escorço que é contudo uma obra-prima de desenho e não de volume – comparem-no ao guerreiro morto de Paolo Ucello na Batalha de Santo Egídio -, pois o desenvolvimento da cabeça aos pés se dá por vibrações onduladas de contorno linear (p. 71).
Andrea Mantegna (1431-1506)
Lamentação Sobre Cristo Morto, c. 1490
Tempera sobre painel, 68 x 81 cm
Pinacoteca di Brera, Milão
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Cosmè Tura (1430-1496): apresenta, a exemplo de Mantegna, uma convicção da figura humana baseada em uma substância material, no caso, corpos como se trabalhados no ferro, com juntas de diamante. Longhi considera que as concepções de Tura muitas vezes o aproximam do grotesco.
Longhi: Eis, de fato, a Virgem da Anunciação, que tenta em vão juntar as mãos (p. 72).
Cosmè Tura (1430-1496)
Anunciação, 1469
Tempera sobre tela, 349 x 305 cm
Museo del Duomo, Ferrara
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Carlo Crivelli (c. 1435-1495): ainda mais fantástico e irreal que Tura, sua linha apresenta uma leve contorção metálica, levando a uma espécie de novo Goticismo.
Longhi: Dele quero que recordem em especial as três obras que estão na Pinacoteca Vaticana [...] e Pietá, todas as três batidas no zinco ou no alumínio, sobretudo a Pietà, com a ferida eternamente aberta no lado de Cristo, o esgar de dor eternamente fixado no rosto de João, as madeixas de Madalena eternamente presas à nuca! E notem também os acréscimos simbólicos das decorações de coral e latão – verdadeiras! (p. 72-73).
Carlo Crivelli (c. 1435-1495)
Pietà
òleo sobre madeira, 105 x 205 cm
Pinacoteca, Vaticano
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Francesco del Cossa (1435-1477): imprime às suas fantasias de mundo mineral um senso construtivo perspectivo, que o leva a uma solução de colorismo resplandecente.
Francesco del Cossa (1435-1477)
Alegoria de Abril: O Triunfo de Vêneus, 1476-84
Afresco, 500 x 320 cm
Palazzo Schifanoia, Ferrara
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Outros artistas citados por Longhi: Lorenzo di Credi (1459-1537), influenciado por Verrocchio e Filippino Lippi (1457-1504), discípulo de Botticelli.
Estilo plástico-linear
O estilo plástico-linear seria basicamente uma fusão dos estilos linear e plástico, de forma que esta junção consiga ser resolvida sem prejuízo do equilíbrio visual da obra. O artista, portanto, tenta imprimir uma convicção plástica às obras, uma convicção de existência das coisas representadas, afirmando seu sentido orgânico. O maior expoente (e talvez o único) deste estilo é Michelangelo Buonarroti, mas optou-se nesse texto a incluir outros dois artistas nesse estilo (Leonardo da Vinci e Correggio) devido ao fato de que Longhi considera que ambos também parecem dar um passo partindo da linha funcional em direção a uma certa plasticidade, embora sem as características da obra de Michelangelo.
- Leonardo da Vinci (1452-1519): Longhi considera que a obra de Leonardo da Vinci seria um exemplo do que ele chama de “empobrecimento científico da linha funcional”, bem como de uma tentativa de “fusão com uma plasticidade epidérmica”. Sua linha funcional é muito acurada e meticulosa, tendendo ao realismo. Além disso, utiliza-se de um claro-escuro que não é construtivo, mas difuso, fazendo aflorar à epiderme a trama anatômica do corpo. Essas características podem ser observadas também na obra de seu mestre, Verrocchio, sendo que Leonardo emprega este estilo para obtenção de efeitos sentimentais. Desta característica psicológica da obra de Leonardo, decorre que ela pode agrar ou não ao espectador da mesma forma como um sujeito da vida real pode agradar ou não a alguém, mas esse agrado não decorreria do gosto pictórico. Segundo Longhi, Leonardo tem interesses científicos por determinados efeitos e técnicas, mas sem conseguir coordená-los em uma criação pictórica. O Leonardo cientista, que se satisfaz em reunir e classificar fatos, acaba por prejudicar o Leonardo artista, que não consegue se interessar apenas na pintura como tal, buscando o realismo científico e uma beleza puramente humana. “Conclusão. Posso exortá-los a se interessar pela nobre humanidade escolhida pelo pintor, mas não posso lhes impor esse interesse em nome do gosto” (p. 76).
Longhi: [...] na Adoração dos Magos, que ficou em esboço, reúne uma infinidade de anotações habilidosíssimas de movimentos instantâneos, sem os subordinar nem os coordenar como o mestre: ele gosta não do movimento, mas deste ou daquele movimento particular. Mesmo o fato de deixar obras inacabadas pode lhes demonstrar algumas coisas: uma insatisfação decerto extremamente louvável, mas também a incapacidade de uma concepção orgânica de estilo simples, sintético, de linha, de plástica ou de cor (p. 75).
Leonardo da Vinci (1452-1519)
Adoração dos Magos, 1481-82
Carvão, aquarela, tinta e óleo sobre madeira, 244 x 240 cm
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Correggio (Antônio Allegri) (1489-1554): Longhi considera Correggio como um Leonardo mais sensual. Utiliza-se do claro-escuro de forma suave, vaporosa, difusa e sua linha é dúctil, branda, insinuante. “Ele desenha maravilhosamente, mas apenas as mulheres, ou melhor, a feminilidade como espelho de leviandade e volubilidade; o resto do mundo se reduz sob esse ponto de vista” (p. 76-77). A sensualidade do Correggio, portanto, se adapta bem a certas representações, como as amantes de Zeus na mitologia grega, mas falha na representação de outros temas, como os sacros, por exemplo.
Correggio (1489-1554)
Danaë, 1530
Óleo sobre tela, 158 x 189 cm
Galleria Borghese, Roma
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Michelangelo Buonarroti (1475-1564): na obra de Michelangelo, a fusão da linha com a plasticidade se realiza de forma plena, fazendo dele o representante quase que exclusivo do estilo plástico-linear. “Assim resolve o problema, problema lírico, de exaltar o organismo difuso em todo o mundo sem nos distrair da primeira e profunda convicção da existência, a convicção plástica, imaginando uma humanidade gigantesca que age, mas em movimentos contidos e concisos e como que travados pela massa: movimentos de torção lenta e forçosa, movimentos mais de massas musculares do que de corpo que se desloca do lugar, e o corpo se recolhe quase sempre num bloco de indizível plasticidade e age por meio do admirável desabrochar dos próprios contornos, das pressões e deslocamentos em contato com outros corpos, orgânicos ou não” (p. 78). Essas características levam a concluir que, na obra de Michelangelo, o conceito pictórico coincide com o ideal escultural, ou seja, tanto melhor será a pintura quanto mais próxima da escultura. Vale lembrar que Michelangelo considerava-se primeiramente um escultor.
Longhi: Observem, com efeito, a obra-prima pictórica absoluta de Michelangelo: o medalhão com a Sagrada Família nos Uffizi. E me acompanhem. No volume global do medalhão, as três figuras se empastam num único grupo inextricável de formas; o resultado, portanto, é aquele que Giotto e Masaccio obtinham reunindo numa única massa os pretendentes de joelhos ou São Pedro e o apóstolo na Ressurreição de Tabita; mas Michelangelo nos faz chegar a essa sensação de massa e de plasticidade reunida não com a imobilidade dos corpos e analogia por proximidade de suas posições, e sim por meio de um desenrolar-se, torcer-se, revirar-se, insinuar-se, aderir-se progressivo das formas individuais, isto é, por meio de uma admirável expressão de organismos em linha funcional (p. 78).
Michelangelo Buonarroti (1475-1564)
Doni Tondo, c. 1506
Têmpera sobre painel, 120 cm (diâmetro)
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi: Vocês viram, de fato, como a Criação de Adão [...] expande admiravelmente as superfícies corporais do primeiro homem, abandonado na terra deserta (p. 80).
Michelangelo Buonarroti (1475-1564)
Criação de Adão, 1510
Afresco, 280 x 570 cm
Capela Sistina, Vaticano
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Outros artistas citados por Longhi: Andrea del Sarto (1486-1530) e Sebastiano del Piombo (1485-1547), que, na avaliação de Longhi, estão no limiar do academicismo, pois repetem os motivos de Michelangelo sem os recriar ou reviver. Menciona ainda os efeitos corruptores sobre a arte europeia da Accademia del Disegno, entidade fundada em 1563, na cidade de Florença. Entre os artistas ligados à Accademia, Longhi cita Bronzino (1503-1572), em cujas obras “a linha perde qualquer tensão vital e a plasticidade não passa de repugnante anatomia de carnes escorbúticas sob o gelo de uma atmosfera ártica e lâminas gélidas de cores estrídulas” (p. 82), além de artistas dos Seiscentos como os pintores da família Carracci, os irmãos Annibale Carracci (1560–1609) e Agostino Carracci (1557–1602) e seu primo Ludovico Carracci (1555–1619), além de Domenico Zampieri, ou Domenichino (1581-1641), estendendo os efeitos nocivos da Accademia até artistas italianos do século XIX como Tranquillo Cremona (1837-1878) e Giovanni Segantini (1858-1899).
Desenvolvimento do sintetismo perspectivo de forma e cor
Do desenvolvimento deste estilo decorrem momentos de grande vitalidade e complexidade que, na avaliação de Longhi, estenderam sua influência até a arte moderna dos séculos XIX e XX.
- Piero della Francesca (1415-1492): um dos artistas mais admirados por Longhi. Sobre ele, o autor declara: “imaginem as formas aplainadas e as deliciosas cores de Paolo Ucello transportadas para uma escala monumental e solene, suprimam os resíduos da entoação gótica de fábula noturna ainda frequentes em Paolo Ucello e entoem todas as superfícies com a luz diurna de Domenico Veneziano, mas ainda mais clara, mais meridiana, mais plein-air, e vocês terão Piero della Francesca, que dessa maneira consegue conferir, ainda em vida do seu percussor, um valor clássico imutável, absoluto, à síntese perspectiva” (p. 84). Piero conjuga forma monumental, com figuras inamovíveis e em poses de estátuas, e cor monumental, apresentadas superfícies justapostas, sob luz diurna e clara. “Assim, cada obra sua, depois de ter-nos convencido de uma enorme profundidade convergente de forma estabelecida em limites sintéticos de retas absolutas ou de curvas amplamente traçadas, aparece-nos como um gigantesco marchetamento variegado de zonas plácidas e poderosas que vivem a vida fervilhante, microscópica, transubstanciada em matéria pictórica. Nos acordes de cores, oferece as mais fortes e delicadas contraposições de valor – em que se manifesta o verdadeiro colorismo-, em que um rosa pálido e um violáceo outonal se encostam em algum poderoso tom composto de vermelho, marrom ou castanho-escuro, em que se harmonizam lado a lado o cinabre o marinho, as duas cores mais difíceis de se justapor sem estridência. De Piero, portanto, origina-se o colorismo moderno como harmonia quente, solar, de tons contrapostos e de gama total estendidos nas vastas pradarias de um repouso colorista jamais alcançado novamente” (p. 89).
Longhi: Ele era obrigado a escolher o perfil (os dois cônjuges deveriam olhar-se), e o perfil se prestava facilmente a tendências lineares, tanto mais se fosse acentuado como nesses modelos; no entanto, que senso estrutural de formas regulares no próprio Federico, na escolha do barrete redondo, nos planos do rosto, no declive poderoso do queixo, na imóvel torrente do busto sobre a paisagem inesperadamente baixa e distante! Mesmo a luz serve para dar regularidade à forma, de modo que as duas pequenas verrugas do duque se transformam em perolazinhas isoladas mais preciosas do que as do colar da duquesa, milagrosamente coladas à pele, cada qual trazendo ao lado a sua pequena sombra solar! E é de fato a entoação maravilhosamente solar e o prumo na forma que faz com que as formas próximas se engastem sobre as distantes, de modo a obter o efeito de superfície colorista em todo o quadro. Sobre o azul descorado do céu estendem-se as duas faixas tropicais do vermelho-tijolo do barrete e do colete, alternadas pelo ouro pálido do rosto sob a zona quentíssima dos cabelos de ébano (p. 84).
Piero della Francesca (1415-1492)
Retratos de Federico da Montefeltro e sua esposa Battista Sforza, 1473-75
Óleo sobre madeira, 47 x 33 cm (cada retrato)
Galleria degli Uffizi, Florença
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi: Lenta irrigação segura dos arrozais da pintura. Extensão de homens e animais nivelados no aplainamento colorista quase sem relevo. Angulações reforçadas, peitos achatados, joelhos partidos, cascos torneados, brancos-negros numa silenciosa partida de xadrez. Poços de forma redonda se estagnam, colinas nuas e manchadas se remendam, hastes e lanças à esquerda irrigam com leite de âmbar e ébano líquidos o prado azul do céu forrado por nuvens bordadas de luz, enquanto à direita se estende a se enxugar a imensa pétala rósea do estandarte vitorioso do vencedor, e as incorruptíveis esferas de marfim pálido avançam se equilibrando sobre os elmos metálicos que, na luz embaciada, transformam-se sobre o peito cerúleo do céu em medalhas – de valor colorista! (p. 88).
Piero della Francesca (1415-1492)
Vitória de Constantino sobre Maxentius, 1452-66
Afresco, 322 x 764 cm
San Francesco, Arezzo
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Melozzo da Forli (1438-1494): considerado o mais fiel seguidor de Piero della Francesca em Roma. Longhi coloca que Melozzo interpreta psicologicamente o esquadrejamento monumental de Piero, utilizando-o para dar impulso vital às suas figuras. Monumentalidade pictórica transforma-se em imponência humana, constituindo-se em um desenvolvimento sentimental das qualidades artísticas de Piero, mas ainda de enorme validade pictórica.
Longhi: Vocês conhecem também Platina diante de Sisto IV [Sisto IV entrega as chaves da biblioteca apostólica a Platina] – na Pinacoteca Vaticana-, e espero que não o esqueçam como exemplo admirável de acordo de cores que nos campos delicados das arquiteturas passam para a frente em tons profundos de plúmbeo, vermelho e azul e sustentam uma forma igualmente monumental (p. 89-90).
Melozzo da Forli (1438-1494)
Fundação da Biblioteca, 1477
Afresco
Pinacoteca, Vaticano
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Luca Signorelli (1450-1523): com Signorelli, inicia-se a luta entre o estilo impessoal arquitetônico de Piero della Francesca e o estilo de linha funcional, retomado de Antonio del Pollaiollo. Na tentativa de combiná-los, a cor passa para segundo plano e por isso reaparece o claro-escuro.
Longhi: Piero é aquele que lhe dá capacidade de verter nas grandes lunetas aquelas massas brônzeas firmemente entrelaçadas de corpos humanos que repicam surdamente o terreno com seus jarretes robustos, mas para dar organismo, vibração e ação a cada corpo ele fragmenta milhares de vezes os poucos e largos planos do mestre, e entre os planos brotam inesperadamente as elásticas juntas de aço da arte florentina (p. 90).
Luca Signorelli (1450-1523)
Sermão e ações do anticristo, 1499-1502
Afresco, largura 700 cm
Capela de San Brizio, Duomo, Orvieto
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Pietro Perugino (1450-1523): na obra de Perugino ocorre o que Longhi chama de transformação do senso espacial de Piero della Francesca para fins sentimentais. Na obra de Piero della Francesca, espaço absoluto e ordenador impera sobre a forma, que por sua vez cria o espaço com seu assentamento de volume, com os efeitos da representação do mundo transubstanciado em cor. Segundo Longhi, Perugino acha que este senso de absoluto espacial pode se transformar em “expressão totalmente sentimental de localidades aprazíveis, de determinado aspecto e sob a poesia envolvente de determinadas horas” (p. 91). Perugino, dessa forma, cria agradáveis conchas espaciais sob uma abóbada celeste esfumada, conferindo um misticismo estático que se adequa bem ao mistério religioso. Mas, novamente, trata-se de uma obra que pode agradar pelas mesmas simpatias que se tem por determinadas expressões ou valores na vida, e não por qualidades intrinsicamente pictóricas.
Longhi: [...] vocês perceberam, observando sua cena da Entrega das chaves a São Pedro, a que ponto a perspectiva decaiu de seus excelsos objetivos para uma habilidosa cenografia espacial que se pretende fazer aliciante com os atrativos de um ambiente comodamente pavimentado por quilômetros até nos conduzir a uma cúpula muito arejada, para além da qual surge o céu e se inicia uma agradável paisagem (p. 91-92).
Pietro Perugino (1450-1523)
Cristo entrega as chaves para São Pedro, 1481-82
Afresco, 335 x 550 cm
Cappela Sistina, Vaticano
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Pinturicchio (1454-1513): discípulo de Perugino, apresenta características semelhantes de obtenção de seduções espaciais e cênicas.
Pinturicchio (1454-1513)
Coroação do Papa Pio III, 1509
Afresco, 335 x 550 cm
Duomo, Siena
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Rafael Sanzio (1483-1520): Longhi considera que Rafael é outro exemplo de artista que busca efeitos perugianos de composição do espaço, uma habilidade de nos sugerir ambientes agradavelmente vazios e espaçosos. “Só que as amplitudes dos edifícios e do espaço não se destinam senão a preparar um digno alojamento para a nobreza de filósofos, cientistas, poetas e santos. Estes porém, longe de ser fatalmente coordenados na síntese perspectiva agora reduzida a débil esquema, circulam livremente no espaço com a liberdade e a vida linear a eles dada pelo desenho, o qual, por sua vez, não aparece como valor absoluto, mas apenas como aquele tanto de arte necessário para criar nesses indivíduos uma sensação que não seja realismo cego, mas de escolha nobre e refinada” (p.93). A arte de Rafael, para Longhi, “não se trata de pintura, mas de literatura figurada, digna de ser respeitada e até admirada somente pela nobreza e dignidade na escolha dos ideais a serem ilustrados” (p. 93). Sua superioridade, portanto, seria um critério moral e não um critério estético.
Rafael Sanzio (1483-1520)
Escola de Atenas, 1509
Afresco, largura na base 770 cm
Stanza della Segnatura, Palazzi Pontifici, Vaticano
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Ercole de' Roberti (1456-14960): de Ferrara, teve no pintor Cosmè Tura seu predecessor na cidade. Embora tenha se inspirado na obra de Tura, transforma o sentido de forma em planos leves e de grande colorismo.
Longhi: Vejam como esse espaço é absolutamente conquistado pelo trono que se faceta a toda a volta, levemente chanfrado, e pelas pessoas que obedecem a essa passagem dos planos perspectivos: percebem agora o valor artístico que unifica o trono e as figuras, enquanto nos quadros úmbricos o trono parece um pequeno palco improvisado no qual se apresentam pessoas que nada têm a ver com ele? E agora considerem toda a superfície do quadro como um plano a ser segmentado para o uso de superfícies regulares de cor; como logo se destaca, mesmo em fotografia, a superioridade pictórica em relação à obra de Tura!
Que lenta e regular alternância de tons claros e escuros; que profundo auxílio de faixas arquitetônicas, de quadros marmóreos; nas pessoas, que serena largueza de carnes alabastrinas habilmente colocadas no campo sacro das duas cortinas verdes [na realidade, vermelhas], por sua vez dispostas regularmente contra o céu! E, numa delicadeza extremamente jeitosa, vejam como aparece o fio do horizonte através do trono, num nível que se alinha ao longo dos nós de mármore a meia-altura dos sustentáculos, de modo a conter quatro compartimentos igualmente repousantes: dois de céu e dois da laguna de Ravena! Que nobreza serena de cor e forma unificadas! (p. 94).
Ercole de' Roberti (1456-14960)
Virgem e o Menino com Santos, 1480
Óleo sobre madeira, 323 x 240 cm
Pinacoteca di Brera, Milão
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- Giovanni Bellini (1430-1516): de longa carreira, começou com um estilo próximo à Mantegna, de predomínio do desenho e concepção marmórea de figuras, atingindo posteriormente um colorismo e repouso de planos que influenciaram os artistas vindouros de sua cidade, Veneza. Na obra de Bellini, é possível observar o uso adequado dos estilos na representação de sentimentos: a linha para representar o tormento e fortes emoções, o plano e a cor para a calma silenciosa do espírito. Longhi demostra essa evolução do estilo a partir da análise de quatros diferentes Pietà pintadas por Bellini.
Longhi: Em primeiro lugar, a Pietà do Museo Correra, a mais antiga. Fio de ferro tortuoso e de contorno suave, rugas de carnes e tecidos, definição da psique dolorida com o meio acurado da linha. (p.100)
Giovanni Bellini (1430-1516)
Pietà, c. 1460
Tempera sobre painel, 74 x 50 cm
Museo Correr, Veneza
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Longhi: A Pietà do Museo di Brera é quase contemporânea. O metal de Pádua bateu os caracóis de cobre de São João, as lâminas das vestes, as bocas entreabertas no tormento silencioso. Mas como já se esfolia mais largamente o mármore do peito de Cristo! (p.100)
Giovanni Bellini (1430-1516)
Pietà, 1460
Tempera sobre painel, 88 x 107 cm
Pinacoteca di Brera, Milão
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi: No entanto, temos de passar para a Pietà do Palazzo Comunale de Rimini para ver a renovação quase completa. Eis todo o quadro ocupado pela alternância de tonalidades coloristas claras e escuras; eis os corpos transformados numa substância com mais vida e alento, como açúcar fino, onde a sombra se deposita com extrema maciez; eis a modelagem se arredondando como nas cabeças dos anjos; eis as cabeleiras de cobre frisado convertendo-se em melenas largas e fundidas; eis os corpos que se tingem de âmbar e os tecidos que se fazem rosados. (p.100)
Giovanni Bellini (1430-1516)
Pietà, c. 1474
Tempera sobre painel, 91 x 131 cm
Pinacoteca Comunale, Rimini
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Longhi: Na Pietà de Berlim a amplitude é ainda maior. Uma unidade estrutural constrói o corpo de Cristo e dos anjos em poucos planos suaves. Como se englobam as três cabeças no alto, como se fundem os bracinhos aos braços do morto! Que suavidade nas curvas que brotam nos ombros, nas asas; e atrás das asas o engaste denso e vibrante de um céu turquesa! E também, inevitavelmente, que dor serena! Reflitam sobre isso se quiserem entender como é o estilo figurativo a determinar as expressões psíquicas igualmente difusas em toda a composição. (p.100)
Giovanni Bellini (1430-1516)
Pietà, 1480-85
Tempera sobre painel, 83 x 68 cm
Staatliche Museen, Berlim
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Longhi: Da primeira a esta última Pietà, vimos o tormento agudo se transformar em repouso sentimental, em calma após a dor, em resignação pacata e suave. Pois bem, é a linha que desaparece para dar lugar aos planos e a cor, nada mais. Este, portanto, é o grande segredo: saber fazer coincidirem as grandes razões do estilo e os grandes sentimentos humanos. Somente a linha pode exaltar e sublinhar o tormento; somente a cor e os planos podem nos dar a calma silenciosa do espírito. Mas entendam também o seguinte: não se pode ir além dessa unificação sentimental de todas as figuras do quadro, ou seja, não se pode avançar para o drama produzido pelos contrastes psicológicos; o estilo se negaria a isso. Na Pietà de Brera não poderia haver uma pessoa calma e resignada (planos e cor) ao lado dos sofredores (linha); na Pietà de Berlim os anjos não poderiam mais chorar (esgares lineares). Isso nos prenuncia a explicação da calma eternamente florida de todos os grandes venezianos que derivam do segundo estilo de Bellini. (p.100-101)
Longhi acredita que Bellini deve ser lembrado como um dos maiores da arte italiana. “Como criador de um sonho de humanidade ardente, suntuosa, benigna, viva em formas simples e solenes materializadas com substância colorista emanando das profundezas e que, partindo do frescor da primavera, prenuncia o calor do verão” (p. 105).
Giovanni Bellini (1430-1516)
São Francisco em Êxtase, 1480-85
Óleo sobre painel, 120 x 137 cm
Frick Collection, Nova York
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- Giorgione da Castelfranco (1477-1510): a tradição de Bellini prossegue na pintura veneziana com Giorgione. Longhi considera que ele atingiu um repouso colorista ainda maior do que o de Bellini, através da redução prodigiosa das zonas da forma e da cor. Giorgione aplica “poucos festões de cor, seja para exprimir humanidade ou natureza, proximidade ou horizontes" (p. 105).
Longhi: Lembrem apenas a Vênus Adormecida de Dresden, uma obra-prima entre muitas outras. Adormecida! Compreendem? Só podia dormir, pois o rosto devia ser uma zona intata de rosa pálido. É, portanto, o repouso da cor que ordena que a humanidade repouse para sempre. E, de tato, quem despertaria essa criatura superior que, unindo os seus longos contornos num suave ovalado, cavou um leito sempiterno entre as gélidas massas sanguíneas e alvas das almofadas e do lençol, e as felpas profundas dos prados que, em três faixas, conduzem o espirito até as distâncias de um horizonte de céu largo e extenso? Mais uma vez, o sonho de uma humanidade absorta e perdida na natureza surge como consequência de um vasto sonho colorista (p. 105).
Giorgione da Castelfranco (1477-1510)
Vênus Adormecida, c. 1510
Óleo sobre tela, 108 x 175 cm
Gemäldegalerie, Dresden
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- Ticiano Vecellio (c. 1490-1576): como Bellini, também teve uma longa carreira e traz estilos diferentes nas suas pinturas da juventude e da velhice. O jovem Ticiano prossegue no estilo de plano e cor de Giorgione, justapondo zonas coloridas de tons contrapostos (massas claras e escuras), evocando serenidade e efeito antidramático. Na velhice, as obras de Ticiano começam a tender para o uso de valores lineares, com unicidade de tons, massas escuras predominantes e vida vibrante no lugar da serenidade. A seguir, um exemplo de cada fase de Ticiano.
Longhi: As zonas de cores já se ampliaram a tal ponto que a forma não se apresenta mais com um verdadeiro senso de planos, mas solda-se em amplas e suaves curvaturas de carnes douradas e vestes suntuosas. Pela última vez vocês viram o tecido romper-se em cristais de gelo sanguíneos profundos no corpo do Amor profano [Amor sacro e Amor profano] da Galleria Borghese, e justamente o corpo desabrocha com tanta maior amplitude quanto menos se faz presente o senso dos planos. Vocês lembram como, no conjunto, o sereno espaço retangular é listado com poucas e largas faixas multicoloridas de terreno escuro, tanque branco, massas arbóreas rebaixadas, céu com fitas brancas e azuis; e como tudo pulsa igualmente com uma única miraculosa substância ambreada levemente ressumante (p. 106).
Ticiano Vecellio (c. 1490-1576)
Amor Sacro e Amor Profano, c. 1514
Óleo sobre tela, 118 x 279 cm
Galleria Borghese, Roma
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Longhi: Desse período, estudamos juntos a Vênus vendando os olhos do Cupido na Galleria Borghese. E eu lhes disse: é a decomposição orgânica da substância pictórica do jovem Ticiano. As massas escuras, antes igualmente contrapostas e alternadas com as claras, adquirem predomínio; no entanto, o calor sufocante da entoação carregada de suores estivais suprime a justaposição das cores e inicia a sua transfusão. Uma vida vibrante, atômica, irisada por fulgores embaçados, passa e repassa fumegando vapores lamacentos por toda a superfície do quadro. Frui-se essencialmente a unicidade de substância pictórica, além das associações bastante nostálgicas brotando dessa podridão outonal da cor que se coagula apagada, assim como os cruores e as amarelidões das folhagens nas calçadas das alamedas desertas exalam das úmidas capilaridades irisadas os presságios de novas primaveras (p. 107).
Ticiano Vecellio (c. 1490-1576)
Vênus vendando os olhos do Cupido, c. 1565
Óleo sobre tela, 118 x 185 cm
Galleria Borghese, Roma
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- Jacopo Tintoretto (1518-1594): com Tintoretto, o conflito entre desenho e cor se torna mais agudo. O artista tenta conciliar o desenho de Michelangelo com o colorido de Ticiano, ou seja, “ser demasiado artista, como desenhista e colorista” (p. 108). Longhi considera que a conciliação dessas duas formas de visão faz com uma nos distraia da outra, prejudicando o conjunto da obra.
Jacopo Tintoretto (1518-1594)
São Marcos liberta um escravo da prisão, 1548
Óleo sobre tela, 415 x 541 cm
Gallerie dell'Accademia, Veneza
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
Longhi: Se vocês não conhecem as suas imensas produções na Scuola di San Marco em Veneza, podem ao menos lembrar o Milagre de São Marcos [São Marcos liberta um escravo da prisão], também em Veneza. Uma entoação miraculosa de amarelo vibrante se espalha por tudo; aqui e ali vibram desde as profundezas alguns lagos ebulindo com a mais bela cor de Veneza, em especial o granadino, cor de maturidade quase desfeita, mas o senso da superfície total a que o quadro de cor sempre obedece perdeu-se irremediavelmente: por quê? Porque foi distraído, não pela linha floral como nos sienenses, mas pela linha funcional e, ademais, pelo claro-escuro, o qual, para dar realce as formas isoladas, pincela de negro os lagos mais puros de cores. Eis por exemplo, à direita, o casaco de um soldado em admirável granadino rompido subitamente por vírgulas castanhas de claro-escuro que querem realçar a musculatura subjacente; e então o olhar se desvia da cor e pode reparar - fruição sucessiva e parcial - que é uma cena de vida e movimento, que os corpos têm energia e funcionalidade, têm linha e relevo plástico, que se agitam destruindo o repouso da cor até que um lago milagrosamente intato de preciosos tons nos atraia novamente para as alegrias coloristas [detalhe ao lado] (p.108-109).
Jacopo Tintoretto (1518-1594)
São Marcos liberta um escravo da prisão (detalhe), 1548
Óleo sobre tela, 415 x 541 cm
Gallerie dell'Accademia, Veneza
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- El Greco (Domenikos Theotokopoulos) (1541-1614): embora tenha atuado principalmente na Espanha, Longhi considera que sua arte é bem italiana, e também analisa seu estilo. O autor considera que El Greco consegue uma solução peculiar para conjugar a substância pictórica com o movimento linear, imaginado o deslocamento orgânico da torrente de matéria pictórica. “Com efeito, os seus corpos vivem a vida fantástica, lodosa, torrencial, imprevista da matéria pictórica que se move e se insinua com uma espécie de desenho colorista produzido pelo movimento impresso na estria viva da cor” (p. 109).
Longhi: Embaixo dormem os apóstolos como que afogados sob as ondas tumultuosas dos panos de matéria improvisada no precioso lodaçal de cor; no alto, sobre uma campina fosforescente, Cristo se dissolve sob a luz, enquanto a sua túnica cor-de-romã desfeita serpenteia embaixo, envolvendo-o num largo regato vertiginoso; um monte de lava incandescente lhe serve de fundo por um instante, enquanto no céu as nuvens se precipitam em cristas de soro que se coagulam sobre o anjo, o qual parece feito da flexível matéria das águas-vivas, segurando pegajosamente entre os dedos recém-coagulados o cálice da paixão transbordante de - creme batido!
É um mundo totalmente fantasiado em substância colorista móvel. Aqui, por um instante, o repouso da cor cede lugar a uma imaginação de organismo colorista primordial demasiado e aprazivelmente poético para ser esquecido, demasiado pessoal para constituir o início de uma nova tradição.
El Greco (1541-1614)
Agonia no Horto, 1600-05
Óleo sobre tela, 169 x 112 cm
Igreja de Santa Maria, Andújar
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Paolo Veronese (1530-1588): considerado por Longhi o herdeiro fiel de Bellini, Giorgione e do jovem Ticiano. A amplitude colorista alcançada por Veronese leva-o “para além da calma, a uma indiferença que na vida seria detestável e que na arte é sublime” (p. 110). Ninguém é mais indiferente ao tema, pois, na pintura de Veronese, cada fato é uma festa, uma cerimônia ou um banquete, de forma a criar a necessidade da cor. Assim, ele acaba com o predomínio de campos escuros e traz de volta os campos claros.
Longhi: O pedal dos acordes é dado pela vastidão dos campos de céu lácteo e acinzentado sobre o qual se imprime uma larga distribuição perspectiva de arquiteturas primeiro opalinas, depois em tom mais intenso na contraluz do intradorso. E eis que no pórtico se dependura a primeira nota violenta de um estandarte cruento, e embaixo emergem aos poucos, sempre mais claros pelos véus espessos da atmosfera, os acordes oleosos dos amarelos-palha, dos rosas-antigos, dos vermelhos-escuros destilados, dos tons de malva e solferino, e depois dos amarelões, dos vermelhos ásperos e dos verdes até o rubro pulsante do fariseu bordado de arminho junto ao ouro exumado do rosto.
Mais admirável é o fato de que o desenho não nos perturba, pois aqui não há desenho: a forma se sustenta perfeitamente e remonta plano sobre plano sem que notemos o contorno dos corpos; mesmo porque estes estão reduzidos ao mínimo pela astúcia superior do artista, que os abriga o mais possível por trás da zona colorista de suas vestimentas. (p. 110)
Paolo Veronese (1530-1588)
Banquete na Casa de Levi, 1573
Óleo sobre tela, 555 x 1280 cm
Gallerie dell'Accademia, Veneza
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- Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770); a arte decorativa no estilo de Veronese é retomada dois séculos depois dele por Tiepolo. Segundo Longhi, “uma retomada em tons mais argênteos e brilhantes, como um Veronese depois de um aguaceiro” (p. 112). Com Tiepolo encerra-se a tradição monumental da síntese perspectiva de forma e cor, que continua apenas a ser usada com maior ou menor superficialidade pelos decoradores de cúpulas e tetos.
Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770)
O Casamento do Imperador Frederico Barbarossa, 1751
Afresco, 400 x 500 cm
Imperial Hall of the Residenz, Würzburg
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- Outros artistas citados por Longhi: Galasso Galassi (1450 - 1488), primeiro discípulo de Piero della Francesca em Ferrara. Francesco Francia (1450-1517) e Lorenzo Costa (1460-1535), ambos de Bolonha, que se caracterizam pelo sentimentalismo religioso. Alvise Vivarini (1446- 1502), Cima da Conegliano (1459-1517) e Bartolomeo Montagna (c. 1450-1523), os três seguidores do estilo de síntese perspectiva apenas da forma de Antonello da Messina. Gentile Bellini (1429-1507), irmão de Giovanni Bellini. Sebastiano del Piombo (1485-1547), de Veneza, influenciado por Giorgione e, mais tarde, por Michelangelo. Giovanni Battista Gaulli, também chamado Baciccia (1639-1709), Pietro de Cortona (1596- 1669) e Luca Giordano (1634-1705), artistas dos Seiscentos italiano, nomes que Longhi cita como exemplos ainda da aparição do estilo em algumas de suas obras.
Estilo Luminista
Longhi, por fim, identifica ainda um último estilo, o luminista, que se propõe a achar uma conciliação entre o realce da forma do estilo linear florentino e o colorismo veneziano. Essa solução é encontrada “com uma redução dos acordos cromáticos a sinfonias parcas e baias de tons profundos, que se conciliassem com as intenções de um partido de luz forte e decidido, o qual, por sua vez, deveria ressaltar e sustentara forma imprimindo-lhe com a sua violência uma simplificação dos planos ou das saliências essenciais. Entendam: não se trata mais de planos perspectivos, mas de planos de luz atuando em corpos que vivem em matéria pictórica afinada em tonalidades baixas, quase chegando ao branco e ao preto” (p. 112-113).
Longhi chega a citar alguns artistas como precursores do estilo como Moretto (1498-1554), de Brescia, Giovanni Battista Moroni (1525-1578) e Giovanni Girolamo Savoldo (1480-1548), mas reconhece que o principal nome deste estilo é Caravaggio.
- Caravaggio (1571-1610): Caravaggio constrói sua obra através da ação da luz, atingindo uma monumentalidade nova e possante. Ele permite à luz “todas as suas possibilidades estruturais sobre os objetos rudes e ásperos das mesas toscas e simples, dos livros sólidos, das caveiras que brotam na luz da mesma forma que a calvicie contraposta dos eremitas” (p. 113).
Caravaggio (1571-1610)
São Jerônimo, 1605-06
Óleo sobre tela, 412 x 157 cm
Galleria Borghese, Roma
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
- Outros artistas citados por Longhi: Giovanni Battista Caracciolo (1578-1635) e Mattia Preti (1613-1699), que seguem o estilo de Caravaggio.
Século XVIII
Longhi ainda cita dois artistas do Setecentos, numa tendência que poderia se chamar de proto-impressionista, pois prenuncia algumas características do impressionismo do século XIX. Alessandro Magnasco (1667-1749) e o paisagista Francesco Guardi (1712-1793) são eles. Esses artistas “imaginam uma espécie de desenho aproximativo, fragmentário, todo feito de quebras rápidas em poucos e violentos toques expressivos nas estrias, nas vírgulas, nas espadeiradas – como se diz – do pincel” (p. 114). Essa espécie de desenho de esboço consegue também, de certa forma, resolver o eterno conflito entre forma e cor. Um método que se revela adequado para registrar momentos fugidios, e não para as grandes aspirações da grande arte.
Francesco Guardi (1712-1793)
O doge de Veneza no bucentauro em San Nicolò di Lido, no dia da da Ascensão, 1766-70
Óleo sobre tela, 67 x 100 cm
Musée du Louvre, Paris
Fonte da imagem: WGA - Web Gallery of Art
CONCLUSÕES
Com Tiepolo e Caravaggio, somados a seus poucos seguidores de qualidade, e com Magnasco e Guardi, em escala inferior, Longhi dá por encerrada a história da pintura italiana. No entanto, considera que a arte, na verdade, não se liga a aspectos étnicos, a não ser para alguns críticos que estabelecem falsos critérios de ambientação, uma vez que não sabem interpretar.
No entanto, a história da pintura continua, não mais em solo italiano, mas profundamente influenciada pela arte italiana. Longhi coloca uma série de exemplos de artistas espanhóis, flamengos, holandeses e franceses que seguiram e desenvolveram a tradição iniciada na Itália. Rubens estuda Caravaggio e os venezianos. Rembrandt funda o desenho impressionista sobre os acenos de Tintoretto e outros italianos. Caravaggio forma o luminismo de Zurbarán e Velázquez, os maiores nomes dos Seiscentos espanhol, além de influenciar a paleta dos holandeses Hals e Vermeer e ser o fundamento da plasticidade francesa obtida pelo efeito da luz em artistas como Le Nain, Chardin e Coubert. A gama de cores de Tiepolo influencia Goya. A pintura veneziana está na base dos paisagistas franceses da década de 1830 e nos românticos, como Delacroix, influenciando ainda os fundadores da grande arte francesa da segunda metade do século XIX. Longhi prossegue ainda dando exemplos formais que estabelecem relações entre artistas italianos do passado e grandes nomes da arte moderna como Manet, Monet, Pissaro, Sisley, Seurat, Signac, Cross, Renoir, Degas e, por fim, Cézanne, considerado por ele o maior artista da idade moderna.
Longhi, ao longo de sua carreira, aperfeiçoou e modificou alguns conceitos estabelecidos nesse texto que, vale repetir, nunca foi publicado até sua morte. É compreensível, afinal ele faz juízos muito críticos a respeito de artistas consagrados da história da arte italiana. No entanto, no dizer do Prof. Luciano Migliaccio, autor do posfácio da edição do livro da Cosac Naify, as ideias de Longhi nessa obra são o incunábulo de seu pensamento sobre arte, que foi sendo lapidado como um diamante ao longo das décadas seguintes, em uma vasta obra que influenciou a história da arte e os historiadores. Seu estilo original de escrita propõe relações peculiares entre o texto e a imagem, criando verdadeiras versões em prosa de imagens artísticas, como se procurou enfatizar neste resumo colocando imagem e texto lado a lado.
Por fim, é interessante observar que seu texto estabelece relações que ligam grandes nomes do passado a artistas modernos de seu tempo, tornando possível perceber a compreensão que ele tinha dos valores da arte moderna, vendo nela (e através dela) a continuação do pensamento estético da pintura do passado, e não na arte acadêmica de qualquer época, que ele parece desprezar profundamente. Sua recusa de entender a arte como simples imitação da vida dá mostras desta percepção e ajuda a construir uma história da arte que, para o público contemporâneo, pode parecer óbvia, mas que foi sendo construída por autores como Longhi, que legitimaram a arte moderna e à ligaram ao passado clássico através do entendimento crítico do pensamento formal da arte ao longo dos séculos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
LONGHI, Roberto. Breve mas verídica história da pintura italiana. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 188 p. Tradução de Denise Bottmann. Posfácio de Luciano Migliaccio.