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As Relações entre imagem e texto na pintura Moema, de Victor Meirelles e no poema épico Caramuru, de José de Santa Rita Durão

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1 INTRODUÇÃO

 

As relações entre poesia e pintura foram motivo de debate e considerações ao longo de muitos séculos, desde a Antiguidade até os tempos modernos, merecendo diferentes abordagens por parte de filósofos, artistas, historiadores da arte, entre outros. Inicialmente consideradas como artes irmãs, a pintura e a poesia tiveram, por muito tempo, uma relação estreita, na qual se enfatizava a similaridade entre as duas artes. A expressão ut pictura poesis (“como a pintura, assim é a poesia”, entre outras traduções possíveis) é a síntese deste pensamento, que dominou o mundo das artes por muito tempo. Somente no século XVIII, tal relação, nos termos que se apresentava, começou a ser questionada, principalmente graças ao pensamento do filósofo G. E. Lessing (1729-1781), que procurou estabelecer as especificidades de cada arte.

 

Este trabalho tem por objetivo procurar as relações entre texto e imagem, tanto no que se aproximam, seguindo a ideia do ut pictura poesis, como no que se distanciam, seguindo suas próprias especificidades, em um exemplo pontual: a representação da personagem Moema na pintura de mesmo nome, de 1866, de Victor Meirelles (1832-1903), em relação ao poema épico Caramuru (1781), do Frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), no qual a personagem aparece originalmente. Se procurará estabelecer até que ponto o texto poético serviu de base para a pintura em termos da concepção e das soluções adotadas, bem como outros fatores que possam ter influenciado o resultado final da obra de Meirelles e o tratamento dado à personagem.

 

 

2 TEORIAS

 

A expressão ut pictura poesis foi retirada da Ars Poetica ou A Arte da Poesia, escrita pelo poeta latino Quintus Horatius Flaccus, ou simplesmente Horácio (65-8 a.C.). Ainda antes de Horácio, a ideia de associação entre pintura e poesia já existia, como se comprova pela expressão poema pictura loquens (poesia é pintura falante, pintura é poesia muda), atribuída ao poeta grego Simonides de Cós  (556-468 a.C). Por trás deste pensamento, está a questão da mimesis, ou da imitação das ações humanas pela via das palavras ou das imagens. Nesse sentido, pintura e poesia seriam artes irmãs, nascidas deste objetivo mimético comum. Este pensamento da Antiguidade foi resgatado no  período do Renascimento, atingindo seu auge com a pintura francesa do século XVII. Se estabeleceu então uma hierarquia de gêneros, na qual a pintura narrativa histórica ocupava o nível mais alto. André Félibien, um dos maiores defensores da pintura histórica, coloca de maneira enfática a superioridade deste tipo de pintura:

(...) é necessário tratar a história e a fábula; representar as grandes ações como fazem os historiadores, ou os temas agradáveis como os poetas; e, subindo ainda mais alto, é necessário, por meio de composições alegóricas, saber cobrir com o véu da fábula as virtudes dos grandes homens e os mistérios mais elevados. Um grande pintor é aquele capaz de realizar bem tais tarefas. É nisto que consiste a força, a nobreza e a grandeza dessa arte. E é particularmente isso que se deve aprender desde cedo e que se deve ensinar aos alunos. (FÉLIBIEN,  2008, p. 40)

Neste trecho, Félibien considera que a virtude de um grande pintor é saber compor alegorias e representar ações que remetam a fábulas ou fatos históricos, ou ainda a ambos ao mesmo tempo, se necessário para glorificar grandes homens ou acontecimentos, como fazem os historiadores e os poetas. Percebe-se a ideia de uma espécie de tradução pictórica de narrativas históricas e poéticas, para a qual o uso de composições alegóricas é encorajado. Pintura e poesia se aproximam também em termos de concepção de um campo comum de procedimentos, no qual parece ocorrer um tipo de tradução dos processos de uma às características da outra.

 

Em 1766, Lessing publica sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. Nessa obra, ele questiona as relações que se procurava estabelecer entre a pintura e a poesia, forçando uma a entrar nos domínios da outra, gerando uma poesia excessivamente descritiva e uma pintura excessivamente alegórica. A poesia, segundo ele, era uma arte do tempo, ou seja, seus objetos próprios se articulam no tempo e se colocam em sequência um ao outro, constituindo-se em ações. Por outo lado, a pintura é uma arte do espaço, seus objetos existem um ao lado do outro, constituindo-se em corpos. Assim, se o pintor quer representar a Vênus, escolherá os atributos que enfatizem sua condição de deusa do amor: beleza, graça, pudor. Em uma narrativa poética, que se articula no tempo, a Vênus pode aparecer ocasionalmente enfurecida, pois este momento se ligará a outros momentos anteriores e posteriores, em que ele será contextualizado e a deusa não se tornará irreconhecível. No entanto, uma passagem em que a Vênus esteja enfurecida não é um momento do pintor, que dispõe apenas de um único instante para melhor representar sua personagem, instante este em que a deusa deverá apresentar os atributos que permitam que seja reconhecida.

 

Lessing usa o exemplo do Laocoonte para explicar seu ponto de vista, uma vez que é uma obra emblemática na história da arte. Se na poesia o momento culminante da narrativa era o final, com a morte do sacerdote troiano e de seus filhos e os significados que ela acarreta nas decisões tomadas a partir daí, na escultura (também uma arte do espaço) o momento chave era o momento imediatamente anterior à morte, o momento do ataque das serpentes, que enfatiza o sofrimento do sacerdote e seus filhos, colocados como vítimas inocentes diante da vontade superior dos deuses. “A pintura pode utilizar apenas um único momento da ação nas suas composições coexistentes e deve, portanto, escolher o momento mais expressivo a partir do qual torna-se mais compreensível o que já se passou e o que se seguirá.” (LESSING, 2011, p. 195-196).

 

Separando as especificidades de cada arte, o texto de Lessing se coloca como um marco da história da arte e precursor da estética moderna.

3 O POEMA ÉPICO CARAMURU, DE JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO

 

O texto que originou a personagem Moema, alvo do presente estudo, foi o poema épico Caramuru (1781) do Frei José de Santa Rita Durão (1722-1784). O poema aborda as lendas que envolvem Diogo Álvares Correia (1475-1557), conhecido como Caramuru, ou “Filho do Trovão”. Diogo Álvares foi um náufrago português que, alcançando a costa brasileira, teve contato com índios tupinambás, conseguindo ser aceito e viver entre eles, conquistando sua amizade e alcançando até mesmo uma posição de prestígio entre os indígenas. Este prestígio é verificado pelo fato de que teria recebido como esposa a filha de um cacique tupinambá, a índia Paraguaçu (1495-1589), que posteriormente se converteu ao catolicismo, adotando o nome de Catarina, e foi para a Europa com Diogo. Na ocasião da partida do casal para a Europa, várias índias, apaixonadas pelo português, lançaram-se ao mar atrás de sua embarcação, inconformadas com sua partida. Santa Rita Durão incluiu este episódio das nadadoras, reputado como verídico, em seu poema, acentuando-o através da criação de uma personagem: a índia Moema. Na narrativa do poema, Moema era filha de um chefe indígena e foi também oferecida como esposa a Diogo Álvares por seu pai, que desejava ter um parentesco com o Caramuru. Santa Rita Durão coloca que vários chefes fizeram o mesmo, mas ressalta a formosura de Moema e o fato dela já ter sido recusada a vários outros pretendentes. O Caramuru, no entanto, recusa a todas elas por estar apaixonado por Paraguaçu.

 

O episódio das nadadoras e o destino de Moema são assim narrados no canto VI do poema, estrofes XXXVII a XLII: 

 

XXXVII​

 

Copiosa multidão da nau Francesa

Corre a ver o espetáculo assombrada;

E ignorando a ocasião da estranha empresa,

Pasma da turba feminil, que nada:

Uma, que às mais precede em gentileza,

Não vinha menos bela, do que irada:

Era Moema, que de inveja geme,

E já vizinha à nau se apega ao leme.

 

XXXVIII

 

Bárbaro (a bela diz) Tigre, e não homem...

Porém o Tigre por cruel que brame,

Acha forças amor, que enfim o domem;

Só a ti não domou, por mais que eu te ame:

Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,

Como não consumis aquele infame?

Mas pagar tanto amor com tédio, e asco...

Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.

 

XXXIX

 

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,

Quando eu a fé rendia ao teu engano;

Nem me ofenderas a escutar-me altivo,

Que é favor, dado a tempo, um desengano:

Porém deixando o coração cativo

Com fazer-te a meus rogos sempre humano,

Fugiste-me, traidor, e desta sorte

Paga meu fino amor tão crua morte?

XL

 

Tão dura ingratidão menos sentira,

E esse fado cruel doce me fora,

Se a meu despeito triunfar não vira

Essa indigna, essa infame, essa traidora:

Por serva, por escrava te seguira,

Se não temera de chamar Senhora

A vil Paraguaçu, que sem que o creia,

Sobre ser-me inferior, é néscia, e feia.

 

XLI

 

Enfim, tens coração de ver-me aflita,

Flutuar moribunda entre estas ondas;

Nem o passado amor teu peito incita

A um ai somente, com que aos meus respondas:

Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,

(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;

Dispara sobre mim teu cruel raio...

E indo a dizer o mais, cai num desmaio.

 

XLII

 

Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,

Pálida a cor, o aspecto moribundo,

Com mão já sem vigor, soltando o leme,

Entre as falsas escumas desce ao fundo:

Mas na onda do mar, que irado freme,

Tornando a aparecer desde o profundo;

Ah Diogo cruel! disse com mágoa,

E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.

 

(DURÃO, p. 117-118)

Na estrofe XXXVII, Santa Rita Durão descreve a “turba feminil” que se lança às águas atrás da embarcação do Caramuru. Entre elas se destaca Moema, bela, gentil e irada, que consegue agarrar-se ao leme do navio. Ns estrofes XXXVIII a XLI é a própria Moema que fala, acusando Diogo e insultando Paraguaçu, externando sua mágoa e lamentando sua sorte. A estrofe XLII descreve sua morte, quando ela se solta do leme, afunda, retorna a superfície, onde ainda faz uma última exclamação, e por fim desaparece nas águas sem mais ser vista. Nesta passagem, portanto, a ação propriamente dita se passa em duas estrofes (XXXVII e XLII), enquanto que, em outras quatro,  predomina a voz de Moema, mostrando sua mágoa, abandonada e rejeitada por seu amado. O poeta parece empenhado em dimensionar o tamanho dos sentimentos contraditórios de Moema naquele instante, propiciando que ela mesma os manifeste, o que justifica, ou pelo menos torna mais compreensível, sua ação deseperada que a leva à morte. A ação reflete o desespero na alma da índia, sendo que este último é enfatizado no texto para que a ação possa ser entendida em todo seu contexto trágico.

 

O texto do poema é lacônico na descrição de Moema, mas emprega repetidamente adjetivos que ressaltam sua beleza e formosura. No final, entretanto, o poeta já a descreve como pálida e com aspecto moribundo. Essa descrição final parece servir para ressaltar seu martírio antes da morte, o que constitui o que Lessing considera um momento próprio da poesia. Como a Vênus enfurecida, que se associa a um instante narrativo, mas não se constitui em uma visão típica da deusa do amor, a Moema pálida e moribunda está associada a um momento específico do poema, que antecede a sua morte, mas não será, como se verá, um atributo associado à india, que terá ressaltada sua beleza e sensualidade, mesmo depois de morta.

 

Cabe ressaltar ainda um aspecto social que envolve a personagem de Moema, tornando-a representativa no imaginário nacional. Se consideradas as suas aparições na narrativa do poema em relação ao tamanho integral da obra, sua relevância nele é mínima. A personagem aparece e desaparece no canto VI do poema, que possui dez cantos ao total, e ainda assim ocupando poucas estrofes. No entanto, a personagem acabou ganhando um relevo muito maior do que possuia na obra original. Com o passar do tempo, Moema foi merecendo destaque nas críticas do poema Caramuru, a ponto de, mesmo sendo um personagem fictício, rivalizar em importância com Diogo Álvares e Paraguaçu.

 

Esta transformação de Moema em personagem autônomo pode estar vinculada ao processo de consolidação da identidade nacional brasileira no século XIX, com a valorização e idealização da figura do índio, um contexto em que o poema adquire novos significados. A valorização de Moema passa, por um lado, por sua associação com a figura do herói trágico, tendo sido inclusive comparada às figuras mitológicas de Dido e Ariadne, também abandonadas por seus amados. “Pelo viés da mulher rejeitada, a personagem de Moema tornava-se mais e mais proeminente em Caramuru” (MIYOSHI, 2010, p. 37).  Por outro lado, Antonio Candido, em análise contemporânea do poema Caramuru, considera que Diogo Álvares representava o civilizador português, enquanto Paraguaçu, a nativa pagã que abraçou a fé católica, “formando ambos uma mesma e complexa realidade” (CANDIDO apud MIYOSHI, 2010, p. 41). Moema permanece como a índia que não se converteu, o indígena puro e selvagem, valorizado no período do romantismo. Esta contextualização histórica é fundamental para se compreender por que uma personagem inicialmente secundária do poema mereceu ser retratada por vários artistas, incluindo nomes representativos da arte brasileira.

 

 

4 A PINTURA MOEMA (1866), DE VICTOR MEIRELLES

 

Victor Meirelles (1832-1903)

Moema, 1866

São Paulo, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP)
Óleo sobre tela, 129 x 190 cm

A tela Moema (1866), pintada pelo artista Victor Meirelles (1832-1903) mostra a índia morta, quase totalmente despida, em uma praia. A pintura possui uma tonalidade acobreada, com uma luz que envolve o corpo da índia, modelando-o e acentuando sua beleza e sensualidade. Moema é representada como uma mulher formosa, de feições indígenas e com cabelos morenos. Seu corpo jaz em uma praia, sendo levemente tocado pelas ondas. Ao fundo percebe-se uma densa vegetação, com pequenas representações de dois grupos de índígenas: um deles que parece avistar o corpo de Moema indo resgatá-lo, enquanto outro acena para um pequeno ponto que se percebe na linha do horizonte, que provavelmente representa a embarcação de Diogo Álvares.

 

A cena representada por Victor Meirelles não consta no poema original de Santa Rita Durão. O artista optou por um momento posterior à narrativa do poema, criado por ele mesmo. E foi além, criando ele próprio tembém uma nova narrativa, com a presença dos índios que estão prestes a resgatar o corpo de Moema, fazendo assim um novo fecho para o drama da heroína trágica. Em vez de sepultá-la no mar, como faz Santa Rita Durão, Meirelles trouxe-a de volta para sua terra, e indicou que seu corpo seria resgatado, o que remete a se imaginar que seriam dados a ela os rituais fúnebres próprios de sua cultura. O que se pode considerar inicialmente a respeito deste tratamento mais piedoso que o pintor dá à personagem, é que ele pode estar relacionado ao contexto social abordado anteriormente, o qual transformou Moema em uma personagem de relevo, valorizando-a e dando-lhe maior importância do que no poema de Santa Rita Durão.

 

Da mesma forma, Meirelles não segue as indicações do texto na representação da índia no momento por ele escolhido. A índia, segundo o poema, já tinha aspecto pálido e moribundo quando se soltou do leme do navio e desapareceu nas águas. Meirelles, no entanto, retira da imagem qualquer representação que dê ao corpo da índia um aspecto de palidez mortuária, envolvendo-a com uma luz que confere ao seu corpo um aspecto vivo e quente, ressaltando sua sensualidade. Segundo o professor e historiador da arte Jorge Coli, “os volumes poderosamente sintéticos, geometrizados, do corpo de Moema, o sombreado definido com poucas transições, o contorno implacável, tornam espiritualizado – não há outra palavra – o insistente tema erótico” (COLI apud MIYOSHI, 2010, p. 117). Essa espécie de sensualidade e beleza espiritualizada são atributos que representam Moema, tornando-se parte dela, de sua tragédia e da sua importância adquirida no imaginário nacional. Representá-la com estes atributos, mesmo em um contexto que, pela narrativa literária, exigisse talvez um tratamento diferente, é uma solução que atende às especificidades da pintura, diferentes das especificidades da poesia.  

 

O momento pictórico escolhido por Meirelles, fora do texto original, acaba cumprindo a função de montar um interessante resumo visual de todo o drama. Além do corpo morto de Moema, que momentos antes havia se lançado ao mar atrás do navio de Diogo Álvares, avista-se, ao longe, o navio se perdendo no horizonte. Sabemos que é o navio de Diogo porque vemos um grupo de índios acenando para ele, remetendo à posição privilegiada que o Caramuru desfrutava entre os indígenas. O que Lessing chama de momento único da pintura, o momento mais expressivo, cumpre sua função de comunicar da melhor forma possível o que aconteceu antes e indicar o que ocorrerá depois, que provavelmente serão os ritos funerários de Moema, o que já se situa na nova narrativa efetuada por Meirelles.

 

Esta nova narrativa não passou despercebida, tendo sido feito sobre ela o seguinte comentário, creditado a Argeu Guimarães:

Resolveu afinal compor com o pincel est’outra estrofe que faltava a Durão, mostrar a tupinambá morta e nua, no dilúculo da praia do Recôncavo, prolongando a poesia para além da vida. Construiu em torno uma natureza merencórea, penetrada do mistério do amor e da morte. Tal o fecho que faltava ao velho fabulário, que o frade não teria jamais a coragem de reviver. (GUIMARÃES apud MIYOSHI, 2010, p. 195)

Guimarães faz uma interessante comparação, em que os laços da imagem com o texto se estreitam a ponto da pintura ser por ele considerada como uma espécie de nova estrofe não escrita do poema. No entanto, mesmo com esta aproximação, não se pode negar que o pintor procurou por um momento que fosse próprio da sua arte, um momento especificamente pictórico, indo encontrá-lo em um instante posterior ao final da narrativa poética. Como no Laocoonte, que inversamente encontra este momento ideal instantes antes do final da narrativa, a pintura Moema se vale do que é essencialmente próprio da sua arte, conseguindo assim uma síntese representativa do drama poético e um retrato da protagonista da tragédia. Isso fica claramente demonstrado pela opção de sair da narrativa poética: na busca pelo melhor momento pictórico, o artista imaginou uma nova sequência de acontecimentos, ou seja, distanciou-se da poesia para melhor representá-la pictoricamente.

 

Pintura e poesia, neste caso, se entrelaçaram e se complementaram, mas a pintura manteve-se estritamente naquilo que era específico do seu fazer. Se a pintura atingiu um efeito semelhante ao da poesia não foi tentando imitar o poema, mas se colocando essencialmente como pintura, com sua própria autonomia e fiel às suas especificidades. Não se subordinou ao poema, não elegeu as mesmas prioridades do poema e sequer se manteve dentro da realidade criada pelo poema. No entanto, manteve uma íntima relação com ele, chegando ao ponto de ser considerada uma continuação pictórica a uma narrativa poética.

 

 

5 CONCLUSÕES

 

O exemplo abordado neste trabalho procurou analisar as relações entre duas obras específicas, no que tangem à representação da personagem Moema, a partir da ideia do ut pictura poesis e do pensamento de Lessing. Essa análise, entretanto, pretende apenas se constituir como uma reflexão ou tentativa de verificação na prática de princípios teóricos. Nesse sentido, se procurou verificar até que ponto o pensamento de Lessing encontrava uma aplicação no caso específico e até que ponto isso poderia desautorizar uma relação entre imagem e texto nos termos da expressão ut pictura poesis.

 

As considerações que Lessing fez a partir das representações da Vênus abordadas neste texto encontraram um paralelo na obra de Meirelles. Como já colocado, o pintor utilizou os atributos que melhor se associavam à imagem da Moema, ou seja, não um cadáver pálido e frio, mas uma índia formosa e sensual. Uma representação mais fria talvez fosse mais adequada ao momento representado, mas seria menos representativa da imagem global que o poema passa da índia e da relevância alcançada pela personagem ao longo dos anos. Da mesma forma, o exemplo de Lessing sobre o Laocoonte também se aplica na pintura de Meirelles. O pintor não buscou nos momentos culminantes da narrativa poética o seu instante pictórico. Prova disso é que ele sequer coloca este instante pictórico dentro da narrativa poética, imaginando um momento posterior a esta narrativa. Neste momento imaginado pelo pintor ele consegue aquilo que Lessing imagina como qualidade da obra pictórica: torna mais compreensível o que se passou e o que se seguirá. O que se passou resume visualmente a narrativa poética e o que se seguirá se relaciona a esta nova narrativa criada pelo pintor, o que novamente pode estar relacionado às dimensões que a personagem adquiriu na época, merecendo um tratamento mais piedoso pelo pintor do que teve com o poeta.

 

Por tudo isso, poderia se concluir que as duas obras tem poucas afinidades entre si. Tal conclusão, entretanto, iria contra muitas leituras das obras, inclusive a leitura aqui comentada que considera a pintura como uma nova estrofe do poema. As obras parecem ter uma afinidade entre si, mas esta afinidade não foi obtida pela subordinação de uma a outra, tanto em termos de concepção como em termos de metodologia. A obra que veio depois, no caso, a pintura, “é como a poesia” não tentando se constituir em um poema pictórico, mas simplesmente sendo pintura, ou seja, explorando as possibilidades de comunicação próprias da sua arte. “Ser como a poesia”, neste caso, não implicou em imitar ou traduzir seus métodos, mas alcançar seus efeitos por caminhos intrinsicamente pictóricos. Nesse contexto, a análise das obras parece confirmar o pensamento de Lessing, ao mesmo tempo em que não se afasta totalmente da expressão ut pictura poesis, se esta for entendida como se referindo aos efeitos atingidos por ambas as artes e não por um campo comum nos seus procedimentos e métodos.    

REFERÊNCIAS

 

 

DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2111> . Acesso em: 29 nov. 2011.

 

ESMERALDO, Eugênia Gorini. A obra: Moema. In: MARQUES, Luiz (coord.). Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. São Paulo: Ed.Prêmio, 1998. Disponível em: <http://www.masp.art.br/servicoeducativo/assessoriaaoprofessor-ago06.php>. Acesso em: 29 nov. 2011.

 

FÉLIBIEN, André. Prefácio às Conferências da Academia Real de Pintura e Escultura; Sétimo Diálogo. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org). A pintura: textos essenciais: vol. 10: os gêneros pictóricos. São Paulo: Ed. 34, 2008. p. 38-45.

 

LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 2011.

 

MIYOSHI, Alexander Gaiotto. Moema é morta. 2010. 422 f. Tese (Tese em História)-Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2010.

 

 

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