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Um turbilhão de paixão e pecado

Amantes, século XV

Pintura sobre madeira

Teto do claustro da Abadia de Santo Domingo de Silos, Burgos (Espanha)

O fiel ergue os olhos em direção a Deus e encontra, em vez do divino, um casal entrelaçado. É inusitado o detalhe na decoração do teto da Abadia de Santo Domingo de Silos. Engenhoso seria, talvez, a palavra mais apropriada. O fiel do século XV que erguesse os olhos talvez não estivesse procurando Deus, mas buscando uma fuga a algum sermão enfadonho. Então, deparar-se-ia com a imagem dos amantes, envoltos pelo vermelho da paixão. A busca em vários sites e livros não dá garantias quanto ao nome da composição, mas deixemos assim. Vamos considerá-los amantes, se não de fato, na intenção.

 

A Abadia de Santo Domingo de Silos é um exemplar da arquitetura românica na Espanha. Apesar de produzida no século XV, essa pintura sobre madeira segue a tradição – que é, na verdade, a designação dada a vários estilos espalhados na Europa Ocidental e essencialmente sacra (UPJOHN et al., 1965). A energia religiosa inculcada pelas cruzadas, no entanto, começa também a se disseminar por áreas profanas. As cortes se desenvolvem, nos séculos XII e XIII, e passam a ser vistas como sinônimo de educação e elegância. A vida intelectual ganha importância. Os cavaleiros e as damas se empenham em aprender a usar jogos de palavras, sátiras, frases de múltiplos sentidos (MACEDO, 2000).

 

Nesse ambiente, desenvolve-se o amor cortês. A mulher da corte, a dama, aparece em poesias e pinturas. Mas, característica da cortesania, ela é idealizada. Com bem aponta Bloch (1995, p. 180), na visão cortês, o amor é “sofrimento inato derivado de se ver e meditar excessivamente sobre a beleza do sexo oposto”. A cortesania é um adiamento da satisfação em nome da pureza espiritual, o que traduz a visão cristã do amor. A virgindade é uma questão central e complicada. Ela é uma abstração equivalente a uma ideia, pois não pode ser situada no corpo, no desejo do corpo ou no olhar. Os pensadores medievais pensavam que a simples expressão de uma ideia fazia com que esta perdesse a universalidade. Transpondo esse conceito, o simples pensar na virgindade já impugnava a virgem. Ou seja, não havia como pensar na virgindade sem que isso implicasse sua perda (BLOCH, 1995).

 

Voltemos, pois, ao nosso casal. Serão casados? Amantes? O homem e a mulher estão no centro da composição; tudo gira em torno deles. Suas roupas são vermelhas, o que pode denotar que há harmonia entre eles. Ideia reforçada por ela vestir uma manga laranja e ele ter o mesmo tom na perna direita das calças. Tudo neles transpira a paixão, incluindo o fundo, também vermelho. A mulher, aqui, já não é mostrada como um demônio, deformada, como em outros tempos da arte românica (TREVISAN, 2003).

 

Ambos são nobres, pois, em boa parte do século XV, o vermelho ainda era uma cor reservada a essa classe social; nem mesmo os burgueses abastados podiam vesti-la (FERRAZ, 2008). Ela é, portanto, uma dama. O longo vestido, de drapeados leves e o decote comportado dão-lhe um ar casto. Os pés não aparecem, em mais um reforço da ideia da pureza feminina. O pintor não teve o mesmo cuidado de detalhes com a vestimenta masculina. Percebe-se que até mesmo os sapatos foram suprimidos, parecendo uma continuidade das calças. O homem segura a dama pelo ombro, quer tê-la perto de si. Não sabemos se é correspondido. A mão dela, no peito dele, pode indicar um carinho, mas também um gesto de recusa. Seguindo-se a lógica cortês, se forem casados, ela já estaria perdida. Aceitando ou não, já foi imaginada de forma voluptuosa; portanto, não é mais pura. Poderíamos facilitar a vida dos amantes: amam-se e não há empecilhos; no entanto, considerando-se o ambiente (uma abadia), essa hipótese perde a força. Com que intenção os monges beneditinos teriam pedido que um casal fosse pintado em cores fortes no teto do claustro, senão com uma função didática?

 

As flores exóticas reforçam o erotismo da cena. Vermelhas e azuis, parecem fazer um balé (uma ode ao amor ou contra o pecado?). Elas não são apenas um ornamento. Narram, trazem um subtexto, têm movimento. Seguindo a lógica de que eles estariam por cometer um ato impuro, as plantas cumprem um papel de advertência. É possível imaginar que, se persistir essa tentativa de quase abraço ou quase beijo, elas, em frêmito, irão separá-los ou esmagá-los.

 

Duas linhas negras isolam essa cena do restante. A ideia de opressão é reforçada por um movimento sinuoso, como se fosse uma serpente, um dos disfarces do diabo. O que significam essas linhas? O casal está preso pelo desejo? Envolvido pelo demônio? No espaço limitado pela linhas, há dezenas de figuras ovaladas brancas, com pontos cor-de-laranja. Os historiadores Priscilla Coutinho e Ricardo Costa (2003) as identificam como copos-de-leite, “planta [...] considerada erótica por possuir um talo arredondado em torno do qual se desenvolve a flor – símbolo feminino –, e um caule amarelo no meio – representando o falo [...] do qual exala uma suave fragrância convidativa ao amor”.

 

Pela expressão facial, o homem parece tranquilo. A mulher, no entanto, não aparenta estar um tanto inquieta, apreensiva, como se o repreendesse? A representação das duas figuras humanas segue a tradição bizantina. Ambos têm dedos e pescoço longos, desproporcionais. Percebe-se que não há uma preocupação com a reprodução de um ideal de perfeição humana ou com algum detalhe que realmente dê personalidade aos personagens. O tema é aparentemente mundano, mas, se fossem colocadas auréolas em ambos, poderiam perfeitamente ser a representação de santos ortodoxos.

 

Há uma ausência de profundidade na composição. O contraste de cores e as linhas negras é que demarca a separação de planos. Externamente à cena amorosa, aparecem flores laranjas e um azul que pode ser o céu, destino dos puros. Mas as flores também têm um quê de erotismo; sua forma lembra os copos-de-leite (teria sido uma brincadeira do pintor?). O colorido, no geral, é característico da arte do medievo. Segundo Ferraz (2008), quanto maior a cartela de cores usada, maior a riqueza demonstrada: “Esse período foi marcado por uma sociedade feudal rigidamente hierarquizada, onde o preço de uma cor tinha influência decisiva sobre o seu significado. As cores eram privilégio dos mais abastados; quanto mais luminosas e puras, mais tinham seu peso pago no equivalente em ouro”.

 

Finalizemos com os amantes, em cuja intimidade nos imiscuimos até aqui. Um olhar mais atento ao movimento dos corpos pode indicar, afinal, que ela o está recusando. Ambos têm o corpo inclinado, ele mais que o dela. Aqui, novamente, o descompromisso com o realismo, herança bizantina (UPJONHON et al., 1965), pois seria impossível que o pretenso amante conseguisse se manter em pé com esse ângulo de inclinação. Há outra possibilidade de interpretação. Ele pode ter usado todos os argumentos e, em uma atitude mais afoita, decidiu puxá-la para si. Ou, ainda, talvez nem tenha sido necessário usar a “força”. A mão feminina pode significar mesmo um carinho e ela o está empurrando carinhosamente em direção ao chão, foi dela a iniciativa amorosa. De qualquer forma, ao que tudo indica, ambos estão por cair sobre as flores, ou uma possível gramínea, visto que o lugar parece um jardim, e tornar-se-ão, de fato, amantes.

 

 

REFERÊNCIAS

 

AMANTES. Disponível em:

 <http://www.talleraquitania.com/index.php?main_page=popup_image&pID=337&zenid=e02798a4ca6c96b77bdc559d99092df2>. Acesso em: 25 jun. 2010.

 

BLOCH, Howard. A lírica do amor e o paradoxo da perfeição. In: _____. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Trad. Claudia Moraes. Rio de Janeiro: 34, 1995. p.148-206.

 

COUTINHO, Priscilla Lauret; COSTA, Ricardo. Entre a pintura e a poesia: o nascimento do Amor e a elevação da condição feminina na Idade Média. In: GUGLIELMI, Nilda (Dir.). Apuntes sobre familia, matrimonio y sexualidad en la Edad Media. Mar del Plata: GIEM (Grupo de Investigaciones y Estudios Medievales) – Universidad Nacional de Mar del Plata, dic. 2003, p.4-28 (ISBN 987-544-029-9). (Colección Fuentes y Estudios Medievales 12).

 

MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5. ed. São Paulo: Contexto. 2002. p.65-92.

 

TREVISAN, Amindo. O rosto de Cristo. Porto Alegre: AGE, 2003.

 

UPJOHN, Everard M., WINGER, Paulo S. & MAHLER, Jane Gaston. História mundial da arte: dos etruscos ao fim da Idade Média. São Paulo: Difel, 1965.

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COMO CITAR ESSE TEXTO

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VARGAS, Rosane. Um turbilhão de paixão e pecado. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!os-amantes/w4jrt>. Acesso em: [dia mês. ano].

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