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 A Torre de Tatlin e eu:

uma relação de amor e ódio

Vladimir Tatlin (1885-1953)

Projeto para Monumento à Terceira Internacional,1919-1920

Madeira, ferro e vidro, altura de 6,10 m

Destruído.

New Yotk, Museum of Modern Art (MoMA)

A natureza esforça-se por dotar os homens de faculdades intelectuais e racionais para que eles possam ser pessoas razoáveis, para terem um entendimento satisfatório da realidade que os cerca e se relacionem com seus semelhantes em termos civilizados e tolerantes. Não obstante, muitos insistem em deixar-se levar por emoções primitivas, por preconceitos lamentáveis, que embaçam sua visão de mundo e os transformam em seres obtusos e de convicções imutáveis. Pois este quase foi meu caso, na minha intricada relação com a Torre de Tatlin (figura acima) durante a disciplina História da Arte IV, no segundo semestre de 2011, do Bacharelado em História da Arte da UFRGS. Até cursar esta disciplina, não conhecia este projeto do arquiteto construtivista Vladimir Tatlin (1885-1953), mas quando o vi apresentado na tela em minha frente minha reação foi muito clara: aversão total. Vieram então apresentações de colegas e, em várias delas, aula após aula, novamente era mostrada a famigerada torre, que mais parecia a Torre Eiffel depois de um bombardeio. E ainda havia aquela associação e engajamento com o comunismo russo, o que só piorava tudo para mim. Portanto, que tortuosos caminhos teriam sido percorridos para que, ao fazer este ensaio dedicado ao meu “ismo” favorito, ou seja, meu movimento artístico modernista favorito, eu eleja o construtivismo russo como o escolhido para ser abordado? É o que tentarei responder a seguir.

 

Uma das atividades propostas para a disciplina de História da Arte IV era a de fazer uma miniexposição modernista, com pequenas reproduções de obras sendo coladas em uma caixa imitando uma exposição de museu. Já conhecendo meus colegas de longa data, sabia que dificilmente alguém faria um trabalho qualquer, que provavelmente todos caprichariam além do que tinha sido solicitado, como de fato ocorreu. Portanto, tratei de formar uma dupla com meu amigo Cláudio Jansen, possuidor de habilidades artísticas, me vacinando assim contra a possibilidade de que o trabalho dependesse das minhas habilidades artísticas, o que certamente comprometeria o resultado final. O que eu não pensei é que um homem com grande potencial procura sempre um desafio à altura de suas capacidades, e assim meu amigo Cláudio se propôs a construir nada mais nada menos do que uma maquete da tal Torre de Tatlin, para meu pasmo e incredulidade. E foi assim que caiu no meu colo a tarefa de participar da remontagem daquela torre que eu odiava profundamente. E foi justamente esta tarefa que mudou tudo. Mas antes de abordar isso, um pouco de história.

 

O construtivismo já nasceu vermelho. “Nenhum movimento na evolução da arte moderna tinha sido uma expressão tão completa da ideologia marxista ou tinha estado tão intimamente ligado a um organismo comunista revolucionário” (SCHARF, 1994, p. 116). Suas concepções estéticas estavam diretamente relacionadas à ideologia marxista e a uma nova realidade que seria construída a partir dela. Deste modo, os construtivistas não se viam como artistas na concepção tradicional, mas sim em um sentido de atuação em diversos campos, como a produção de máquinas, a engenharia arquitetônica ou os meios gráficos e fotográficos de comunicação. A partir de um conceito de unificação entre arte e sociedade, os construtivistas buscavam uma inserção dentro da realidade social, uma arte funcional, de formas básicas e sem adornos, que satisfizesse necessidades materiais e expressasse as aspirações do proletariado ascendente. Seus objetos não eram obras de arte propriamente ditas e tampouco peças industriais. Um dos principais nomes do grupo, Aleksandr Rodchenko (1891-1956), ao participar de uma exposição construtivista, apresenta uma série de construções suspensas (figura abaixo) chamando-as de “trabalhos de laboratório” ou “pesquisa”, mostrando o caráter ambivalente delas. “As obras eram expostas ali como objetos de arte, mas não procuravam expressar-se estritamente como objetos de arte” (FER, 1993, p. 97). Os materiais utilizados também procuravam uma ruptura com os suportes tradicionais da arte, utilizando ferro, vidro, madeira, enfim materiais que fossem associados à maquinaria moderna.

Aleksandr Rodchenko (1891-1956)

Construção oval suspensa nº 12, c. 1920

Compensado, construção parcialmente pintada com tinta de alumínio e arame, 61 x 84 x 47 cm

New York, Museum of Modern Art (MoMA)

Vladimir Tatlin também era um dos principais nomes do movimento. Trabalhou em Berlin e Paris, onde visitou o estúdio parisiense de Picasso. Ao retornar para a Rússia, realizou os chamados contra-relevos, utilizando cartão, madeira e metal, que cobriu com uma variedade de materiais como vidro e argamassa. As composições de Tatlin eram completamente não objetivas, diferente de Picasso que procurava evocar objetos reais (DAVIES, 2010, p. 1033). Com a Revolução Bolchevique de 1917, Tatlin torna-se membro do Partido Comunista e sua arte muda, concentrando-se na arquitetura e engenharia. Abraça a estética da modernidade tecnológica e aposta na incorporação de materiais industriais na arte, design e arquitetura, relacionando esse ideal artístico à construção de uma nova sociedade sem classes. A forma deveria estar associada à função, com a eliminação dos ornamentos, que eram elementos típicos de ostentação da burguesia. Nesse ponto, entra uma interessante distinção feita entre os termos construção e composição feita na época. A construção era vista como um “sistema”, uma organização de elementos materiais, na qual não havia componentes supérfluos ou decorativos e que não estava sujeita à atribuição de significados convencionais. A composição, por outro lado, utilizava elementos decorativos e era arranjada de modo a ter um significado definido e convencional. Pela própria definição destes termos, é fácil perceber a associação da ideia de construção a uma ideologia política e econômica que pretendia romper com o modelo social anterior, não estando mais sujeita a suas regras e criando sua própria realidade.

 

Em 1919, Tatlin iniciou seu projeto para o Monumento à Terceira Internacional, conhecido como a Torre de Tatlin. Neste trabalho, Tatlin procurou simbolizar o desenvolvimento do socialismo, empregando formas de uma construção abstrata, pensada como uma grande escada em que as espirais representariam o movimento da humanidade liberta (FER, 1993, p. 106). Era uma estrutura projetada para ter cerca de 400 metros de altura, com uma moldura espiral metálica e possuindo uma pequena inclinação. No interior da estrutura haveria um cubo, uma pirâmide e um cilindro de vidro, que abrigariam reuniões e conferências e que girariam nas seguintes velocidades: o cubo faria uma rotação completa em um ano; a pirâmide, em um mês e o cilindro, em um dia. A torre seria construída com materiais tecnológicos modernos e utilizando técnicas avançadas de engenharia. A maquete foi apresentada em 1920, em São Petersburgo, onde estava planejada sua construção. Tatlin sintetizava nesta obra os ideais do construtivismo: arte funcional inserida na vida, estética de formas básicas adaptada às suas funções, materiais tecnológicos modernos e construção de um “sistema”, com sua própria organização de elementos desvinculados de convenções de significados burgueses. E tudo isso em nome da nova realidade que estava sendo construída: o socialismo russo, que prometia um futuro melhor e uma sociedade mais justa.

 

O projeto, entretanto, não passou da maquete. Pior que isso, toda a estética construtivista foi sendo desautorizada pelo nascente governo soviético. Em intensos debates durante os anos 1920, o novo regime procurava estabelecer como seria uma arte "verdadeiramente revolucionária". Nesse debate, a arte figurativa foi estabelecendo um domínio de modo que, nos anos 1930, o chamado realismo soviético emerge como uma espécie política de estado oficial para as manifestações artísticas e culturais do país. A arte de vanguarda russa passou a ser proibida e movimentos como o construtivismo, que se engajaram na revolução socialista, foram associados com as vanguardas burguesas europeias e considerados, por assim dizer, não-apropriados ao povo russo. Tatlin, apesar de tudo, permaneceu na União Soviética, ao contrário de muitos outros artistas, falecendo em 1953.

 

E aqui retorno a minha problemática relação com a Torre de Tatlin. Estando diante do problema de ter que construir uma maquete da torre, uma das primeiras providências que tive que fazer foi olhar para ela. E olhar muito. Este olhar mais atento começou a mostrar que a torre não era afinal o caos assimétrico e desequilibrado que parecia à primeira vista. Era assimétrica, de fato e possuía uma inclinação, mas sua estrutura começava a fazer algum sentido afinal. “Apesar de ser loucura, revela método”, já dizia Polônio, personagem de Hamlet. Primeiramente, percebi que eram duas espirais que se entrelaçavam e não apenas uma, como na primeira impressão. Precisávamos também identificar as diferentes partes que compunham a estrutura, a fim de podermos fabricá-las isoladamente para juntá-las depois de algum modo. Todo este processo de desmonte da torre permitiu uma visão diferenciada do processo de concepção da mesma. Ao mesmo tempo, uma pesquisa mais intensa sobre a história da Torre e do próprio construtivismo acabou trazendo um contexto interessante que serviu para elaborarmos um texto curatorial para o qual nos havíamos proposto a responder uma pergunta: por que reconstruir a Torre de Tatlin?

 

Para responder esta pergunta, tivemos que entrar no espírito dos construtivistas das décadas de 1910 e 1920. O que foi possível perceber de imediato era que o movimento estava comprometido não apenas em construir estruturas, mas em como essas estruturas construiriam a nova sociedade que eles acreditavam estar iniciando. Era um movimento intrinsicamente ligado a questões do seu tempo, procurando respostas na modernidade de sua época para constituir sua estética e inseri-la na vida real. De certa forma, parecia uma aproximação de uma estética modernista, que pregava a especificidade da arte, com o ideal da contemporaneidade de mesclar arte e vida. O ideal deles pode talvez soar muito pretencioso nos dias de hoje, mas parecia ser um comprometimento sincero. Inocente, idealista e utópico, talvez, mas sincero. De qualquer forma, o fato era que os construtivistas olhavam sempre para o futuro, um futuro que eles estavam começando a construir. Este olhar parece ter sido esperançoso, ávido pela concretização daquela nova sociedade que não era para eles um sonho distante, mas uma realidade que estava começando. Resolvemos apostar no contraste deste olhar otimista para o futuro dos construtivistas com a projeção de futuro de hoje, que parece cercada de receios e incertezas, por conta de uma violência cada vez mais desenfreada e das sucessivas crises econômicas, sociais e ambientais.

 

O destino que movimento teve também foi um fator levado em conta. Não pude deixar de pensar no que poderia ter acontecido se a Torre de Tatlin tivesse sido realmente construída. Será que um monumento daquelas proporções não consolidaria em definitivo a estética das vanguardas russas, mudando o rumo dos acontecimentos e, mais pretensiosamente, talvez da própria Revolução Socialista? O historiador da arte Paul Wood (1993, p. 284), abordando o regime stalinista, que oficializou o realismo soviético, coloca o seguinte: “uma segunda revolução está em andamento – a revolução que estabeleceria o ‘socialismo em um só país’, a revolução que, para alguns historiadores, é efetivamente uma contra revolução, o sepultamento de 1917 [...]”. A força simbólica de um monumento daquelas proporções, se construído, poderia manter vivo o espírito original da Revolução, se é que este espírito algum dia foi modificado? E ainda: considerando o papel que a Torre Eiffel, em Paris, exerce como símbolo e monumento no mundo contemporâneo, como seria vista a Torre de Tatlin na atualidade, se ela tivesse sido construída? Que consequências e influências se seguiriam à sua construção? Esse exercício imaginativo foi muito interessante e permitiu que eu fosse me relacionando com a Torre de uma forma diferente. A situação de Tatlin, que viu o regime que ele lutou para implantar e no qual ele acreditava se voltar contra suas concepções, também foi um fator importante nesse sentido. Não sei o quanto os rumos estéticos que o regime soviético adotou decepcionaram ou não Tatlin, mas não pude deixar de imaginar se um dia ele, olhando para trás, não teria pensado, como Fernando Gabeira disse uma vez, que "sonhara o sonho errado".

 

Diante de todas essas informações e conjecturas, aos poucos o ranço inicial contra a Torre de Tatlin foi se desfazendo. Mas ainda restava a tarefa de montá-la. Minha ajuda, nesse sentido, foi restrita, pois, como já disse, minhas habilidades artísticas para tanto deixam um pouco a desejar. Mas aprendi muito no processo, que foi literalmente uma construção no sentido estabelecido pelos construtivistas: uma organização de elementos materiais. Acredito que a organização de todos os elementos fabricados por nós na construção da estrutura possibilitou a vivência, na prática, de uma experiência construtivista. Depois disso, quando descobri, pela internet, que existia um grupo que se propunha a montar a torre no tamanho que ela foi planejada, mas com a fabricação das peças pelo mundo afora, sem juntá-las e montar a estrutura (o que seria um desafio e tanto), cheguei à conclusão que talvez o próprio Tatlin desaprovasse o projeto. O sentido do construtivismo me parece estar justamente em juntar as peças e criar a estrutura. Fazer isso em pequena escala é uma experiência construtivista mais completa do que fabricar as peças em tamanho real e nunca montar a estrutura. Se a maquete não servirá aos fins funcionais previstos, as peças em tamanho real soltas muito menos servirão, mas a experiência construtivista só se realiza (e, neste caso, talvez só seja possível) na primeira hipótese.

 

E foi assim que minha relação inicial de ódio pela Torre de Tatlin se transformou em uma relação de amor, ou pelo menos de admiração e respeito, a ponto de eleger o construtivismo russo como o meu “ismo” favorito, a despeito de tantos outros que eu gosto. Para encerrar, gostaria de relembrar uma passagem do livro História da Arte, de E. Gombrich, um dos primeiros livros sobre o assunto que li, e que eu acho que se ajusta bem a esta situação:

“Na realidade, não penso que existam quaisquer razões erradas para se gostar de um quadro ou de uma escultura. Alguém pode gostar de uma paisagem porque ela lhe recorda sua terra natal, ou de um retrato porque lhe lembra um amigo. Nada há de errado nisso. Todos nós, quando vemos um quadro, estamos fadados a recordar mil e uma coisas que influenciam o nosso agrado ou desagrado. Na medida em que essas lembranças nos ajudam a fruir do que vemos, não temos por que nos preocupar. Somente quando alguma recordação irrelevante nos torna parciais e preconceituosos, quando instintivamente voltamos as costas a um quadro magnífico de uma cena alpina porque não gostamos de praticar o alpinismo, é que devemos perscrutar o nosso íntimo para desvendar as razões da aversão que estraga um prazer que de outro modo poderíamos ter. Há razões erradas para não se gostar de uma obra de arte.” (GOMBRICH, 1999, p. 15).

REFERÊNCIAS

 

DAVIES, Penelope J. E. et al. A nova história da arte de Janson. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

 

FER, Briony. O construtivismo russo. In: FER, B. et al. Realismo, racionalismo, surrealismo: a arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1993. p. 96-115.

 

GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1999.

 

SHARF, Aaron. Construtivismo. In: STANGOS, Nikos (org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 116-121.

 

WOOD, Paul. A Rússia Soviética. In: FER, B. et al. Realismo, racionalismo, surrealismo: a arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1993. p. 264-285.

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