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O retrato alegórico no período barroco: um estudo de caso

Nota 1

Algumas considerações sobre o período que denominamos “Barroco”

 

A época atualmente conhecida como Barroco [1], um período de certa forma impreciso em termos acadêmicos e intelectuais pela dificuldade na identificação de fenômenos característicos e na mensuração de sua dimensão temporal, foi considerada durante muito tempo como uma excentricidade do Renascimento. O que parece correto afirmar, entretanto, é que a arte barroca proporciona uma complexa e dinâmica diversidade de formas e expressões em profundo contraste com a moderação dos períodos imediatamente anteriores e posteriores.  Porém, é difícil falar em uma “arte barroca uniforme”, já que devem ser consideradas também as diferenças geográficas, comparando, por exemplo, as realizações do barroco italiano com as produções dos demais países da Europa, principalmente dos países do norte (Holanda, Alemanha e Países Baixos).

 

De qualquer forma, a ambiguidade (ou ubiquidade) talvez seja uma das principais características do barroco: “os prazeres mundanos e a sensualidade, a espiritualidade religiosa e o ascetismo severo, uma vasta diversidade formal e uma ordem estrita e rigorosa caminhavam de mãos dadas” (BAUER; PRATER, 2007, p. 6). A teatralidade na composição das cenas, a utilização dramática do claroescuro, a ênfase nos primeiros planos e o recurso à alegoria são algumas das peculiaridades do período.

 

Um ponto importante a ser destacado é a ampliação dos campos temáticos, já que os artistas barrocos deixaram de estar confinados a representações históricas religiosas ou seculares. O universo visual do Barroco explorou temas antes considerados secundários e que se consagraram neste período, tais como a paisagem, a pintura de gênero, as naturezas mortas, a caricatura e os retratos (individuais ou de grupos) que foram recuperados e talvez tenha sido a época em que tiveram o seu apogeu dentro da história da arte.      

 

Alegoria e iconologia

 

As figuras, cenas e metáforas concebidas na maioria das vezes alegoricamente, foram usadas em pinturas de grande complexidade. “A alegoria barroca comporta muito mais do que uma simples personificação, na medida em que visualiza um conceito abstracto ou uma determinada situação conferindo a uma figura humana determinados atributos” (BAUER; PRATER, 2007, p. 10).  

 

O termo alegoria designa uma figura de estilo utilizada nas artes visuais (e na literatura) para expressar ideias abstratas e/ou sentimentos. Trata-se de expressar um pensamento ou conceito por meio de uma ou várias imagens (ou metáforas), com as quais se passa de um sentido literal a um sentido figurado ou alegórico. Embora próxima do símbolo, a alegoria dele se distingue; enquanto na relação simbólica o elo entre a imagem e sua significação é direto e claro, na alegoria, essa relação é arbitrária, fruto de uma construção. A alegoria fala de outra coisa que não de si mesma  e procura evocar uma realidade por intermédio da utilização de signos arbitrários, convencionados historicamente e culturalmente. A alegoria foi constituída pela retórica antiga como ornamento do discurso e nos séculos XVI e XVII e passou a ser o instrumento principal de interpretação e construção dos próprios discursos.

 

Cesare Ripa (c.1560 – c.1623), autor da obra Iconologia, publicada em 1593, utilizou pela primeira vez o termo “iconologia” para descrever e interpretar obras alegóricas. Ripa propõe a iconologia como uma espécie de lógica das imagens, ou seja, como uma técnica construtiva e interpretativa. Sendo uma transposição da retórica à constituição de imagens pictóricas, a formulação de Ripa toma o discurso como modelo: as imagens da pintura imitam o discurso. Sua obra tornou-se o texto-chave na constituição do classicismo, pois expõe a fatura de imagens “adequadas”, nas quais retornam as categorias da retórica antiga, principalmente de conveniência, adequação ou decoro: para coisas do conhecimento, imagens de coisas elevadas; para coisas censuráveis, imagens de coisas vis, e assim por diante. Mesmo no período barroco, no qual aparentemente existiu maior liberdade de criação, ainda permaneceu o componente retórico da alegoria.

 

Segundo o historiador da arte Erwin Panofsky (2009, p. 23), o homem é “o único animal que deixa registro atrás de si, pois é o único animal cujos produtos ‘chamam à mente’ uma ideia que se distingue da existência material destes.” Assim, de acordo com o autor, podemos dizer que uma pintura (sobretudo na época barroca) é um efeito de ilusão: de real só tem a aparência. Ainda conforme Panofsky, perceber a relação de significação é “separar a ideia do conceito a ser expresso dos meios de expressão” (PANOFSKY, 2009, p. 24), lembrando que o veículo ou meio de comunicação preenche a função de transmitir um conceito.

 

O retrato

 

O retrato pode ser definido como um modo de expressão artística que busca representar uma personalidade, e não apenas uma fisionomia. Neste sentido, o retrato é uma espécie de verificação; como se o retratado quisesse saber como é ou como é visto pelos outros. A importância dada a pintura de história no século XVII, considerada a mais elevada de arte, explica em parte o interesse pelo retrato, o qual seria a imagem do protagonista, do herói de uma história imaginária. O retrato seiscentista, portanto, relata a situação do individuo dentro de determinada sociedade, nunca é, como queriam os teóricos renascentistas, uma reprodução fiel e objetiva, mímesis em estado puro, mas sempre uma leitura negociada.

 

Alguns retratos do período também tendem a possuir códigos ocultos que dão pistas para a identidade da figura retratada; a pose e os atributos alegóricos presentes nos quadros tem um significado. A alegoria é, assim, outro elemento essencial e fundamental do Barroco, também presente nos retratos, com o objetivo de conferir a uma figura humana determinados atributos a partir de símbolos e conceitos abstratos. 

 

Gênero por excelência do período barroco, os retratos não saíram de moda; ao contrário, com o advento da fotografia e das novas tecnologias eletrônicas, passaram a ser produzidos cada vez mais e, na maioria dos casos, permanecendo a ideia da invenção de uma história, de uma narrativa, de ilusão a partir da pessoa retratada.

 

Estudo de caso: Artemisia Gentileschi e o Autorretrato como Alegoria da Pintura

          

Tentando fazer uma relação com o que foi dito anteriormente, analisaremos neste tópico um pouco mais detalhadamente, um retrato do período barroco: a obra de Artemisia Gentileschi (1593-c.1652/53), intitulada Autorretrato como Alegoria da Pintura, realizada por volta de 1630. 

 

A vida e obra de Artemisia podem proporcionar um fascinante argumento para obras de ficção. Não vamos nos deter nos detalhes de sua conturbada biografia aqui, porém o que podemos afirmar é que foi uma mulher excepcional que possuía não apenas coragem, mas também um raro talento para produzir uma arte única e intransigente. Essa importante representante do barroco italiano teve uma grande reputação em toda a Europa, levando uma vida independente, o que era raro para uma mulher na época. Trabalhou em várias cidades da Europa, como Florença, Gênova, Veneza e Londres, fixando-se em Nápoles em 1630. Tornou-se uma das maiores pintoras do seu tempo, reconhecida ainda em vida, apesar das dificuldades por que passou. Atualmente, Artemisia Gentileschi tem sido objeto de diversos estudos, principalmente de cunho feminista, embora poucos ainda publicados em língua portuguesa. Portanto,

 

Artemisia era em grande medida a exceção à regra quase global que, nas sociedades de grande porte, atribuía as diferentes artes segundo o sexo, e as artes que se ocupavam da representação figurativa eram atribuídas quase exclusivamente aos homens. A arte do início do século XVII pode ter aberto espaço para individualistas sem lei como Caravaggio, mas ainda estava longe de chegar a seu status moderno como um meio através do qual os seres humanos em geral buscam a auto-expressão.  (BELL, 2008, p. 229)

O quadro Autorretrato como Alegoria da Pintura foi realizado pela artista na plenitude da sua criatividade, tendo uma relevância especial dentro do conjunto de sua obra. É uma criação totalmente original, uma invenzione, e sua significação, além do valor artístico, prende-se ao fato de que, ao retratar-se para a posteridade, a artista escolheu a própria representação da sua arte, em plena ação, portando pincel e paleta. 

Artemisia Gentileschi (1593 - c.1652/53)

Autorretrato como Alegoria da Pintura, c. 1630
Óleo sobre tela, 96,5 x 73,7 cm
Windsor (Inglaterra), Royal Collection

Considerado um dos autorretratos mais inovadores e criativos de todo o período barroco, de acordo com a historiadora da arte Ann M. Roberts (DAVIES et al, 2010), Artemisia pôde concretizar o que nenhum homem podia: representar-se como a figura alegórica da Pintura (La Pittura). No quadro, as vestes e ação da figura seguem a descrição de Cesare Rippa da pintura na sua obra Iconologia, cujos atributos eram amplamente reconhecidos e aceitos na época. A pintura deveria ser representada como uma bela mulher de cabelos negros em desalinho que simbolizariam o frenesi divino da criação; usando um vestido multicolorido que demonstraria o talento da artista; com as linhas do rosto marcadas de maneira a mostrar seus pensamentos fantasiosos; portando uma corrente de ouro no pescoço, da qual penderia uma máscara com a inscrição imitatio (imitação) – com o objetivo de apontar que a imitação faz parte da pintura e dela é inseparável– e teria numa das mãos um pincel e na outra uma paleta.  

Detalhe da ilustração para a alegoria da pintura numa edição holandesa (c. 1603) da obra Iconologia de Cesare Ripa.

Nesta obra de Artemisia (assim como em várias outras), percebemos a sua capacidade de realizar inventivas adaptações de temas recorrentes e a sua habilidade formal e enérgica que expressa uma iconografia pessoal, na qual está presente sua identidade de mulher e artista. Artemisia capta o momento em que a pintora parece estar buscando inspiração ou recuperando sua energia mental para continuar pintando. O uso espetacular da luz que reflete no rosto, e em parte do corpo da artista, parece estar vindo do quadro ou de uma janela pela qual estaria entrando a claridade que permitiria a execução da obra, mas também poderia demonstrar a iluminação divina que estaria presente na mente da pintora. Percebe-se a habilidade de Artemisia em pintar as cores e os panos do vestido e o cabelo desalinhado sobre a testa, além da reconhecida capacidade em representar o corpo feminino, como atestam outras obras suas. Conforme resume a historiadora da arte Mary Garrard:

Sem recorrer a uma complexa personificação, Artemisia evoca o contraste entre Teoria e Prática em seu Autorretrato. Ela mesmo pousou com um braço levantado para cima, esticando a mão na direção do alvo invisível, sugerindo a mais alta aspiração ideal da pintura, com o outro braço firmemente apoiado na mesa, a mão segurando os pincéis e a paleta que são os materiais físicos da pintura. (GARRARD, 1989, p. 358)

Ao contrário dos artistas do sexo masculino, que são forçados a se retratarem acompanhados com figura feminina para simbolizar a Pintura, Artemisia, como uma mulher artista, pôde combinar sua imagem com a iconografia da alegórica personificação da pintura e criar uma aparente composição simples com muita originalidade iconográfica. “Assim, a pintura confirma o papel único de Artemísia, enquanto mulher pintora – que se representa não só a si própria mas também a toda a Pintura, reflectindo o novo e elevado estatuto dos artistas.” (DAVIES et al, 2010, p. 683).

 

REFERÊNCIAS

 

BAUER, Hermann; PRATER, Andreas. Barroco. Köln: Taschen, 2007.

 

DAVIES, J. E.  et al. A Nova História da Arte de Janson: a tradição ocidental. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

 

GARRARD, Mary D. Artemisia Gentileschi: the image of the female hero in Italian Baroque art. Princeton: Princeton University Press, 1989.

 

PANOFSKY, Erwin. Introdução: a História da Arte como uma disciplina humanística. In: Significado nas artes visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

 

RIPA, Cesare. Iconologia. Disponível em: <http://ia310827.us.archive.org/1/items/iconologiadicesa00ripa/iconologiadicesa00ripa_bw.pdf>.  Acessado em: 25 jan. 2016.

 

SLATKIN, Wendy. Women Artists in History: from antiquity to the 20th century. 2.ed. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1990

 

 

NOTAS

 

[1] O termo barroco foi criado pelos críticos de arte racionalistas do século XVIII para designar um estilo que consideravam um travesti, uma imitação burlesca, vistosa, bizarra e completamente destituída de gosto de todos os preceitos da arte (Cf. BAUER; PRATER, 2007, p. 6). (voltar ao texto na nota 1)

 

 

COMO CITAR ESSE TEXTO

 

ROSSI, Elvio Antônio. O retrato alegórico no período barroco: um estudo de caso. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!autorretrato-barroco/l0otq>. Acesso em:

 

 

Este texto foi publicado originalmente no projeto Tópicos em História da Arte: escritos e leituras sobre arte e artistas, do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.  Disponível em:

http://www.ufrgs.br/napead/repositorio/objetos/historia-arte/idmod.php?p=estudbarroco

A presente versão inclui algumas modificações e acréscimos, realizados em 2016.

Notas
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