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Cristo carregando a cruz, de Hieronymus Bosch: uma leitura

Hieronymus Bosch (c.1450-1516)

Cristo Carregando a Cruz, s/d (após 1500)

Óleo sobre madeira, 74 x 81 cm

Museum voor Schone Kunsten, Ghen, Bélgica

Este dramático painel talvez seja uma das mais alucinantes criações da história da arte ocidental.  A pintura é provavelmente um dos últimos trabalhos de Hieronymus Bosch (c.1450-1516), de datação imprecisa, porém certamente posterior a 1500. É uma composição extremamente avançada para a época, apesar de ser mais uma representação de uma cena da paixão de Cristo (um tema recorrente em Bosch e nos demais pintores europeus da época). O quadro, quase que totalmente preenchido por rostos muito próximos uns dos outros, em “um close-up cinematográfico”, sem espaço para mais nada, é um verdadeiro estudo de expressões faciais humanas e semblantes demoníacos; uma multidão de faces caricaturais, disformes e contorcidas, parecendo saídas do inferno (talvez o tema mais bem representado por Bosch em diversos dos seus quadros). Percebe-se que a técnica é muito sofisticada e as cores da paleta, com as quais Bosch pintou os rostos - alguns como “máscaras” - e os chapéus, são muito ricas.

 

No entanto, os elementos da composição, apesar de caóticos e caricaturais, não extrapolam, e o equilíbrio fica mantido para enfatizar a serenidade do rosto delicadamente moldado do Cristo, no centro de tudo, com a cruz às costas, que através de sua linha diagonal faz com que nossa visão, ao olhar pela primeira vez o quadro, enxergue exatamente este elemento.

Hieronymus Bosch (c.1450-1516)

Cristo Carregando a Cruz (detalhe do rosto de Cristo), s/d (após 1500)

Óleo sobre madeira, 74 x 81 cm

Museum voor Schone Kunsten, Ghen, Bélgica

O sereno e sofrido semblante de Cristo está colocado exatamente no cruzamento de duas linhas diagonais. Deste modo, a cabeça de Cristo recebe ênfase da própria cruz, a única forma de linhas retas da pintura. Conforme o artista Trewin Copplestone (1997), a cruz não parece ser de madeira, mas feita de raios de luz que ajudam a iluminar a modelagem sutil e cuidadosamente desenhada do rosto de Jesus, contrastando com o restante da pintura, mais escuro e sombrio, com pouca iluminação (com exceção da representação de Verônica). A expressão do rosto de Cristo parece traduzir o momento em que ele profere as palavras: “Perdoai-os Senhor, pois eles não sabem o que fazem”.

 

Uma das diagonais segue a linha da cruz, a partir da figura de Simão Cirineu (o homem que ajudou Jesus a carregar a cruz) até o canto inferior direito onde está representado o “mau ladrão”, que será crucificado ao lado de Cristo.

Hieronymus Bosch (c.1450-1516)

Cristo Carregando a Cruz (detalhe do mau ladrão), s/d (após 1500)

Óleo sobre madeira, 74 x 81 cm

Museum voor Schone Kunsten, Ghen, Bélgica

Este detalhe do quadro revela como Bosch mostra de forma admirável o abjeto, a maldade e a brutalidade, de forma explícita, através do uso da distorção e da expressão visual. Os traços dos rostos aqui representados estão no limite entre o humano e o fantástico. Os homens que estão frente a frente (nariz a nariz) com o ladrão desafiador demonstram certo prazer em seu olhar, parecendo gritar insultos, enquanto o ladrão parece aumentar cada vez mais o seu ódio. Observando esta cena, um pouco mais atentamente, temos a sensação de que estamos vendo um “frame” de cinema, uma cena paralisada (no “pause”), bastando apertar o botão “play” para que ela volte à ação.

 

 A segunda diagonal parte do canto esquerdo abaixo, onde está representada a única figura feminina do quadro (reparemos que a figura de Maria não está representada), Verônica, segurando o pano - o “santo sudário” - com o qual teria enxugado o rosto de Jesus, até o pálido rosto do “bom ladrão” representado no canto superior direito, entre dois cidadãos.

Hieronymus Bosch (c.1450-1516)

Cristo Carregando a Cruz (detalhe de Verônica com o sudário), s/d (após 1500)

Óleo sobre madeira, 74 x 81 cm

Museum voor Schone Kunsten, Ghen, Bélgica

Nota-se, aqui, a expressão suave e delicada de Verônica, de perfil com os olhos abaixados, olhando para o Cristo do véu que aparece com os olhos abertos e com um sentimento de vida e compaixão, vivendo para a “vida eterna”, contrastando com a expressão sofrida do Cristo que carrega a Cruz e aceita resignado o seu destino.

Hieronymus Bosch (c.1450-1516)

Cristo Carregando a Cruz (detalhe do bom ladrão), s/d (após 1500)

Óleo sobre madeira, 74 x 81 cm

Museum voor Schone Kunsten, Ghen, Bélgica

Nesta parte do quadro, vemos a representação do ladrão que está aparentemente arrependido dos seus atos, talvez pedindo perdão, com os olhos erguidos e feições angustiadas, e empalidecendo diante do seu inevitável destino, acentuado pela representação do que parece ser um sacerdote e de um cidadão (que pode também ser um monge), provavelmente proferindo palavras de desprezo e lembrando-o do que o espera além da morte.

 

A belíssima pintura flamenga, organizada e serena, é tão distante do cenário de horrores da pintura de Hieronymus Bosch (c.1450-1516), que pode dar a impressão que seus autores eram antípodas e de períodos muito diferentes. No entanto, o cenário deles era o mesmo, seu mundo exterior muito próximo e a distância temporal entre eles, mínima. Quando Jan van Eyck morreu, por exemplo, Bosch estava nascendo. Mesmo assim, a harmonia da pintura flamenga tradicional parece conflitar com as representações grotescas que vemos nas obras de Bosch, produto de sua imaginação desenfreada, mas que sem dúvida nenhuma também reflete uma época de transição e demonstra sua preocupação com aquele mundo que se transformava diante de seus olhos.

 

Muitas das pinturas de Bosch, sempre realizadas de forma muito engenhosa, são religiosas, porém, ao mesmo tempo, podem ser analisadas como uma análise crítica do mundo e dos seus habitantes. Este quadro mostra como Bosch sentiu e de certa maneira se “identificou” com o sofrimento de Cristo, representado como um homem sozinho e conformado, que é condenado/crucificado “carregando os pecados do mundo” para tentar salvá-lo do mal. Esta empatia se enquadra nos movimentos religiosos que tiveram origem no período final da Idade Média, e não podemos esquecer que o próprio pintor foi um católico ortodoxo e membro eminente de uma irmandade religiosa chamada de Confraria de Nossa Senhora. Para a “moderna fé”, Cristo foi o primeiro e grande exemplo, mas também um inalcançável ideal. Talvez esta seja a mensagem que Bosch tentou transmitir aqui.

 

Em quase todas as suas obras, Bosch se ocupou de homens maus e pecaminosos, em diversos aspectos e situações (os dois ladrões que vão ser crucificados juntamente com Cristo, por exemplo, são representados em outros quadros). Certamente, não foi o único que fez isso, porém o que o difere dos outros é que ele se atreveu a pintar além das suas aparências externas. Podemos dizer que o que vemos nessas figuras são elementos da maldade interior dos personagens retratados pelo pintor. Concluímos com as palavras do historiador da arte Ernst Gombrich:

Pela primeira vez e talvez única vez, um artista conseguiu dar forma concreta e tangível aos medos que obcecavam o espírito dos homens na Idade Média. Foi uma façanha que talvez só fosse possível nesse momento exato, quando as antigas ideias ainda possuíam vigor, enquanto o espírito moderno propiciava ao artista os métodos para representar o que via. Supomos que Jerônimo Bosch poderia ter escrito em uma de suas pinturas do inferno o que Jan van Eyck escreveu em sua pacífica cena dos esponsais dos Arnolfinis: “Eu estava presente”. (GOMBRICH, 2008, p. 359).

REFERÊNCIAS

 

BOSING, Walter. Hieronymus Bosch. Koln: Benedikt Taschen, 1991.

 

CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.71-72.

 

COPPLESTONE, Trewin. Vida e Obra de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

 

GOMBRICH, Ernst H. A História da Arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

 

HIERONYMUS BOSCH: Coleção Mestres da Pintura. São Paulo: Abril Cultural, 1977.

 

MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES DE GHENT. Disponível em: <http://www.mskgent.be/>. Acessado em: 24 jan. 2016.

Este texto foi publicado originalmente no blog Kaleidoskopiokultural, pertencente ao autor. Disponível em: https://kaleidoskopiokultural.wordpress.com/. A presente versão inclui algumas modificações e acréscimos, realizados em 2016.

COMO CITAR ESSE TEXTO​

ROSSI, Elvio Antônio. Cristo carregando a cruz, de Hieronymus Bosch: uma leitura. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/cristo-carregando-cruz>. Acesso em: [dia mês. ano].

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