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Não sabemos muito sobre a vida deste pintor e gravurista flamengo do final do século XV e início do século XVI. Seu verdadeiro nome era Jerome van Aken (ou Jeroen van Aeken), e não há registro preciso da data de seu nascimento, na pequena, porém culturalmente importante, cidade de s’Hertongenbosch (atualmente Bois-de-Duc), perto da fronteira com a Bélgica, da qual tirou o seu nome “artístico” (para se diferenciar do irmão Goossen, também pintor) e onde parece ter vivido toda a sua vida. Sua morte foi anotada, em 1516, nos registros da Confraria de Nossa Senhora (da qual o pintor fazia parte), onde constam as poucas informações existentes sobre ele. Entre 1479 e 1481, casou com uma mulher de origem nobre, Alyed Goyaerts van den Meervenne, e por meio desse casamento conseguiu um grande dote, o qual lhe teria permitido uma maior dedicação à pintura. 

Hieronymus Bosch (c. 1450-1516)

Autorretrato (?), provavelmente cópia de um original desaparecido, s/d

Lápis e sanguínea, 41 x 28 cm

França, Biblioteca Municipal de Arras

Bosch foi um católico ortodoxo, tornando-se membro, a partir de 1486, de uma irmandade religiosa local (a já citada Confraria de Nossa Senhora), porém bastante poderosa, devido à riqueza e importância de seus membros, e cuja principal função era a organização de festas marianas. De qualquer forma, devido às suas pinturas mais conhecidas, no século XVII, Bosch foi acusado de heresia.Na cidade, ainda existiam outros grupos religiosos, como o dos Irmãos da Vida Comum e o dos Irmãos e Irmãs do Livre Espírito, classificada como herética e esotérica. Esta última é frequentemente sugerida como fonte de inspiração “boschiana”, embora não existam provas de sua participação nela.

 

Sabemos que Bosch descendia de uma família de pintores e artesãos e que provavelmente teria aprendido o ofício com o pai ou com o tio. Ao que se pensa, o denominado Jean van Aken, várias vezes citado nos arquivos da Catedral de Bois-le-Duc como o realizador dos afrescos existentes nessa igreja, era seu tio.

 

Apesar de ter sido quase contemporâneo de Jan van Eyck (f. 1441), seu estilo era completamente diferente. Por outro lado, é possível apontar semelhanças das pinturas de Bosch com algumas obras de artistas alemães como Martin Schongauer (f. 1491), Mathias Grünewald (c. 1470/80-1528) e Albrecht Dürer (1471-1528). Especula-se que sua obra tenha sido uma das fontes do movimento surrealista surgido no século XX. Bosch é também considerado o primeiro artista fantástico da história da arte. Conforme o historiador da arte E. H. Gombrich: 

À semelhança de Grünewald, Bosch também mostrou que as tradições e as realizações da pintura, desenvolvidas para representar a realidade do modo mais convincente, podiam, por assim dizer, ser invertidas para nos darem uma imagem igualmente plausível de figuras que nenhum olho humano jamais vira (GOMBRICH, 2008, p. 356).

O período em que Hieronymus Bosch viveu foi particularmente crítico e corresponde à passagem de um modo de vida a outro (do feudalismo ao capitalismo comercial). Em grande parte de suas obras, podemos verificar que, embora vivendo na aurora do Renascimento, suas pinturas ainda guardam muitas características do período medieval, principalmente do estilo denominado gótico internacional. Nesse mundo, há um elemento que não podemos desprezar na análise da obra do pintor: a importância da corrente mística na Flandres dos séculos XV e XVI (obsessão pelo Inferno, processos de bruxaria, etc.). Suas fontes fundamentais são as miniaturas, as ilustrações das margens dos livros medievais e os bestiários fantásticos da época. Portanto, "a leitura de livros arcanos, a sabedoria proverbial e a reflexão espiritual individual devem ter dado forma a seus 'retábulos' sem altar, nos quais ele ridiculariza afetuosamente a tola humanidade nua" (BELL, 2008, p. 187).

Hieronymus Bosch (c.1450-1516)

Os Sete Pecados Capitais, c. 1480

Óleo sobre madeira, 120 x 150 cm

Madrid, Museu do Prado

Os Países Baixos, um dos importantes centros artísticos da Europa na época, podiam sustentar um especialista inovador como Bosch, pois lá havia patronos interessados não apenas em temas religiosos, mas também em diversões imaginativas. Ludwig von Baldass, um dos maiores conhecedores da obra de Bosch, registra em sua obra de 1943, a sua individualidade diante dos pintores da época.

Pelos problemas que coloca, ele está absolutamente sozinho. É o grande solitário da história da arte; é o pintor que, através de sua arte – que está historicamente à altura de sua época -, quer mais do que os outros. [...] Apresenta à humanidade um espelho de duas faces. Nele, a humanidade vê refletida, por um lado, sua necessidade e sua perversidade; por outro, as consequências terríveis, no Além, resultantes de seus pecados mortais. Nesse sentido, Bosch continua sendo um filho da Idade Média; mas, pela maneira totalmente independente de exemplos que emprega para representar suas concepções dentro das formas artísticas, pertence aos tempos modernos. Dessa forma, encontra-se no limite entre as duas épocas (COLEÇÃO MESTRES DA PINTURA, 1977, p. 6).

Com relação ao inventário de suas obras, conforme o historiador da arte Ian Chilvers (2001), apenas cerca de 40 quadros e alguns desenhos ainda sobrevivem; porém, nenhum está datado e somente em seis a assinatura do pintor confirma sua autenticidade. A maior parte de suas pinturas é imediatamente reconhecível por seus elementos fantásticos, tais como criaturas meio humanas e meio animais, demônios, etc., mesclados com figuras humanas num ambiente arquitetônico e paisagístico imaginário. De acordo com Chilvers (2001, p. 72): “Há, de fato, algo de estranhamente moderno nas fantasias turbulentas e grotescas de Bosch, e, não por acaso, ele tem exercido forte atração sobre o gosto contemporâneo”.

Hieronymus Bosch (c. 1450-1516)

Tríptico do Juízo Final (painel central), s/d

Óleo sobre madeira, 164 x 127 cm

Akademie der Bildenden Künste, Viena

Os temas básicos, apesar de serem muito simples (cenas da vida de Cristo ou de santos, de textos bíblicos e provérbios), são pesadamente elaborados com símbolos e narrativas subsidiários. Conforme o escritor e pintor Julian Bell: "A pena e o pincel de Bosch dissolviam e recompunham formas corpóreas tanto naturais como artificiais – pássaros e garrafas, metais e carne pálida – em toda uma nova biosfera de mutantes frágeis, dissolvidos numa bela e luminosa flutuação de cores." (BELL, 2008, p. 187).

 

A fama de Bosch foi grande, mesmo na sua época, e suas pinturas foram avidamente colecionadas por Filipe II (1556-98) da Espanha. Hoje, a maior coleção das obras do pintor encontra-se no Museu do Prado, em Madrid. Com suas gravuras, Bosch atingiu um público ainda maior, favorecendo inclusive o surgimento de imitadores. Pieter Bruegel (c. 1525-1569) é considerado um artista que foi influenciado pelas obras de Bosch, conseguindo ampliar seus limites.

 

A atividade artística de Hieronymus Bosch, de acordo com o que consta no volume sobre o pintor pertencente à coleção Grande Mestres da Pintura (1977), é comumente dividida em duas vertentes distintas: a realista e a fantástica. Na primeira, incluem-se todos os quadros de imediata ou mediata inspiração bíblica. Nessas obras, pertencentes à sua fase inicial, Bosch segue o critério tradicional de divisão do espaço e de ordenação de figuras pela utilização dos esquemas geométricos em diagonal, piramidal e em círculo. Podemos citar como exemplos: As bodas de Caná, Epifania ou Adoração dos Magos e Ecce homo. Somente poucas das pinturas iniciais de Bosch se distinguem da iconografia tradicional, porém alguns detalhes, como a representação dos dois ladrões em Cristo carregando a cruz não teve aparentemente precedentes, conforme afirma Walter Bosing (1991), autor de vários livros sobre Bosch publicados pela Editora Taschen. 

Hieronymus Bosch (c. 1450-1516)

Cristo carregando a cruz, c. 1480

Óleo sobre madeira, 57 x 32 cm

Viena, Kunsthistorisches Museum a

Na vertente fantástica ou simbólica, o critério de composição passa a ser mais original e rompe com os padrões clássicos. As grandes obras dessa categoria (A carroça de feno, O juízo final, As tentações de Santo Antônio e O jardim das delícias) são apresentadas em trípticos, com sequências estruturadas e precisas e com uma infinidade de detalhes, porém nenhum deles gratuito. É inegável afirmar que havia uma mensagem moral bastante explícita em suas obras.

Hieronymus Bosch (c. 1450-1516)

Tríptico do Jardim das delícias (painel central), c. 1500

Òleo sobre madeira, 220 x 195 cm

Museu do Prado, Madrid

Em outra pintura, denominada Cristo carregando a Cruz (clique aqui para ler um trabalho específico sobre esse quadro), realizada provavelmente no período final de sua vida, nota-se novamente uma “mudança de estilo” na forma de pintar de Bosch e, no nosso entender, outra inovação, ao retratar numa composição extremamente avançada para a época, uma cena quase fotográfica (ou cinematográfica) em um “close-up” de rostos muito próximos, todos eles distorcidos e assustadores, com expressões faciais humanas, mas ao mesmo tempo demoníacas, à exceção dos semblantes de Jesus (no centro de tudo, mantendo o equilíbrio da cena) e Verônica (de perfil segurando o pano com a “imagem” do rosto de Cristo).

Hieronymus Bosch (c.1450-1516)

Cristo Carregando a Cruz, s/d (após 1500)

Óleo sobre madeira, 74 x 81 cm

Museum voor Schone Kunsten, Ghen, Bélgica

Concluímos com uma citação que, em nosso entender, sintetiza impecavelmente a vida e a obra deste singular artista.

Pela primeira vez e talvez única vez, um artista conseguiu dar forma concreta e tangível aos medos que obcecavam o espírito dos homens na Idade Média. Foi uma façanha que talvez só fosse possível nesse momento exato, quando as antigas ideias ainda possuíam vigor, enquanto o espírito moderno propiciava ao artista os métodos para representar o que via. Supomos que Jerônimo Bosch poderia ter escrito em uma de suas pinturas do inferno o que Jan van Eyck escreveu em sua pacífica cena dos esponsais dos Arnolfinis: “Eu estava presente” (GOMBRICH, 2008, p. 359).

REFERÊNCIAS

 

BELL, Julian. Uma Nova História da Arte. São Paulo, Martins Fontes, 2008.

 

BOSING, Walter. Hieronymus Bosch. Koln: Benedikt Taschen, 1991.

 

CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.71-72.

 

COPPLESTONE, Trewin. Vida e Obra de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

 

GOMBRICH, Ernst H. A História da Arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

 

HIERONYMUS Bosch: Coleção Mestres da Pintura. São Paulo: Abril Cultural, 1977.

 

Se você aprecia Bosch, talvez goste de ler também Cristo Carregando a Cruz.
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