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Frans Post (1612-1680)

Rio São Francisco, 1638

Óleo sobre tela, 60 cm x 95 cm

Paris, Museu do Louvre

Ao lançarmos o olhar sobre esta encantadora paisagem, rapidamente nos maravilhamos com seus graciosos tons de cores e com a placidez da capivara se alimentando na beira do rio, mas indo além da experiência estésica, precisamos ter a dimensão exata do quão importante histórica e artisticamente a obra é, para isso devemos compreender seu contexto de produção e o artista que a criou.

 

O Conde Maurício de Nassau (1604-1679), nobre holandês, viu no Brasil uma chance de desenvolver a sua nação, tendo uma visão diferenciada dos demais colonizadores, trouxe consigo escritores e artistas para documentar os seus feitos. Durante o período em que esteve no país (8 anos), instaurou uma cidade conhecida pelo respeito à diversidade e justiça, além de suas belas construções.

 

Segundo o historiador Leonardo Dantas Silva (s.d.) vieram poetas, pintores, naturalistas, médicos, astrônomos, cartógrafos, arquitetos, etc.

Quando o Conde João Maurício de Nassau aportou em Pernambuco, na qualidade de Governador do Brasil Holandês, em 23 de Janeiro de 1637, trazia em sua comitiva não um exército, à moda dos colonizadores de então, mas uma verdadeira missão científica que ainda hoje desperta as atenções dos estudiosos daquele período. (SILVA, s.d.).

Entre estes homens estava Frans Janszoon Post (1612-1680), nascido na Holanda, na cidade de Haarlem, filho de um pintor de vitrais e irmão do reconhecido arquiteto e pintor Pieter Post (1608-1669), o que indica que ele vivia em um ambiente artístico, pouco se sabe sobre sua formação ou sua vida antes de vir para cá aos 24 anos, não há registro sobre obras anteriores, porém, sua seleção para a viagem foi feita através da rede de amizades/relações profissionais do seu irmão, que era também seu mentor. (CHILVERS, 2007, p. 422 e LAGO, 2009, p. 21-49).

 

A paisagem teve destaque no campo das artes neste período e, juntamente com os retratos, foi um grande sucesso no país de origem de Frans Post (1612-1680), pode-se identificar no conjunto da sua obra a influência de alguns cânones oriundos da formação europeia, no entanto, ele desenvolveu peculiaridades criando um estilo próprio, dando uma conotação única às telas e indo além do registro histórico para o qual havia sido designado.

Para Nassau, o trabalho de Post devia ser sistemático: pintar quadros a óleo representando as principais capitais holandesas do Nordeste, com o objetivo não apenas de fazer um levantamento topográfico, mas também, muito provavelmente, de decorar a residência do príncipe, que queria ter sob seus olhos as principais paisagens dos territórios postos sob sua autoridade. (LAGO, 2005, p. 16)

O apreço do nobre por estas telas é tanto que permanece com elas até pouco antes de sua morte, quando decide doá-las ao Rei Luis XIV juntamente com outras importantes obras de valor cultural e científico, provavelmente esperando algum valor em troca para restabelecer suas finanças, infelizmente isto não ocorreu antes do seu falecimento. É desta forma que as obras de Post chegam até a França, mas após um interesse inicial, acabaram permanecendo por anos esquecidas entre as ricas coleções reais de Versalhes. (LAGO E DUCOS, 2005, p. 11-19)

 

Os autores Pedro e Bia Correa Lago (2009) postulam quatro fases para a sua carreira, sendo a primeira de 1637 a 1644, muito criativa e original, na qual estava no Brasil; a segunda de 1645 a 1660, quando retornou à Holanda e continuou pintando de acordo com suas memórias; a terceira vai de 1661 a 1669, fase da sua maturidade e de maior comércio de obras, na qual fazia as composições da tela de acordo com o desejo do encomendante (sempre relacionado ao pitoresco das américas, não há registros de obras com outras temáticas em sua carreira); e a quarta fase de 1670 a 1680, em que decai sua vida pessoal e produção, fato que pode ter relação com a morte de seu irmão e com o alcoolismo.

Apenas sete quadros chegaram até nós de toda a produção do artista nos sete anos passados no Brasil, que pode ser estimada em pelo menos 18 óleos sobre tela. Há consenso de que estes sete são os quadros mais importantes da obra de Frans Post. Também se acredita que, caso tivessem sobrevivido e permanecido juntas as 18 telas realizadas nesta primeira fase, o reconhecimento da importância do artista teria chegado bem mais cedo. (LAGO, 2009, p. 85)

O Rio São Francisco, tela aqui analisada, é uma das poucas de sua primeira fase que permaneceram até os dias atuais [1] e foi criada no início da sua estada no país, provavelmente realizada no próprio local ou a partir de esboços/desenhos feitos durante a observação. Alguns autores comentam sobre a possibilidade de que o cactus e a capivara, no primeiro plano, possam ter tido o auxílio da observação de desenhos de especialistas em fauna e flora, como por exemplo, Albert Eckhout (1610-1666) e naturalistas que estavam na comitiva de Nassau.

 

A exuberante paisagem da natureza é cortada por uma linha horizontal, quebrada pela presença vertical do cactus à direita, apresentando no primeiro plano algumas plantas e uma capivara, no plano de fundo há a predominância de um céu muito grande, com inúmeros tons de suaves cores que apresentam a gama da iluminação das nuvens num provável fim de tarde, além da topografia da região.

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O céu permanece coberto e tudo parece tranquilo nesta composição, que muito estimulou a imaginação ao longo do século XX. Trata-se talvez do quadro mais atraente entre as sete primeiras obras a óleo de Frans Post, devido a sua atmosfera misteriosa e bastante desolada, acentuada pela presença do cacto (planta pouco disseminada no Brasil) e o toque poético dado pela presença da capivara bem realista pastando calmamente no centro da composição. (LAGO, 2005, p. 66)

O plano de fundo da obra está à direita e é dominado por um céu imenso com nuvens de diferentes matizes de azul e branco, contando ainda com nuances de rosa e amarelo, seguindo o ângulo ou os moldes das paisagens holandesas. Abaixo deste céu podemos verificar o relevo ao redor do rio, no qual sob as terras mais elevadas aparece o forte e abaixo uma casa (demonstrando seu talento de miniaturista), na margem direita tem-se uma pequena embarcação, provavelmente utilizada para transporte e pesca, dando-nos indícios da forma de organização e subsistência dos primeiros moradores.

 

Em sua análise, a professora Sandra Pesavento (2004, p. 9) afirma que “A visão é panorâmica, a indicar que o tema do quadro é mesmo a paisagem natural do meio, quebrada pelas presenças da capivara, em primeiro plano, e de traços da ocupação humana da área, no fundo da cena, na outra margem do rio, onde apenas se vislumbra o Forte Maurício.”

 

Em algumas referências a esta obra temos como título O Rio São Francisco e o Forte Maurício, optamos pela denominação dada no catálogo do Louvre, museu que a abriga no momento. Porém, esta representação é corroborada por textos da época e por outras versões desta obra, nas quais a predisposição documental é mais intensa e consta o forte Maurício nos dois títulos, uma delas é a que está no Livro de Barleaus (p. 45) e a outra é a cópia realizada em guache por Thiéry (séc. XVIII).

Frans Post (1612-1680)

Forte Maurício no Rio São Francisco, , 1647

Gravura em cobre

Conforme Lago (2009, p. 57), "Na gravura do livro de Barlaeus - que Nassau exigia puramente descritiva - a capivara desaparece e dá lugar a uma cena histórica (a fuga dos portugueses após um ataque bem-sucedido de Nassau à região)."

Thiéry

Forte Maurício situado no Grande Rio São Francisco e a pesca do peixe-boi, séc. XIX

Guache, 38,4 x 54,1 cm

Lago (2009, p. 57) afirma que "No guache de Thiéry, o interesse do francês pelo elemento exótico torna-se central, a ponto de inserir na composição uma cena adicional de pesca ao peixe-boi (prática comum no Nordeste do Brasil naquela época), que certamente figurava em um dos quadros hoje perdidos de Post."

 

O Rio São Francisco era a mais importante fonte de água da região, sendo a largura entre suas margens variável ao longo da sua extensão. Nestas regiões com abundância de água, a fauna e a flora costumam ser mais ricas e diversificadas, também as plantações e caças tem maior aporte na beira do rio, sendo um local adequado para morar e estratégico militarmente, como informa o próprio Nassau:

Contentes por haver banido o inimigo de Pernambuco, permanecemos nesta região, que considero ideal para conduzir a guerra ao inimigo. Sobretudo no local onde o rio, sempre muito largo, se estreita. Foi por isso que mandei construir um forte nas margens do rio, a seis milhas de distância da costa. (LAGO, 2005, p. 66)

A vazão do rio parece vir da esquerda, intuimos isso através da suave iluminação que resplandece dali, no local onde ele encontra-se com o céu que é refletido em todo seu dorso caudaloso e transmite a sensação de infinitude de possibilidades daquele novo território. Segundo Chevalier (2009, p. 780-781) o simbolismo do rio e do fluir das águas é associado a: possibilidade universal, fluidez das formas, fertilidade, morte e renovação; o curso das águas é a corrente da vida e da morte, também relacionado à purificação e à travessia entre dois mundos ou dois estados (fenomenal x incondicional, por exemplo). Neste sentido, pode-se considerar a possibilidade do desejo de travessia do primitivo para a civilização ou vice-versa.

 

No primeiro plano, à esquerda, temos o grande e lindo cactus florido, rodeado pela vegetação e por plantas menores que denotam a variedade da flora, logo abaixo há algumas pedras, sendo que numa delas encontramos a assinatura/data sutilmente inscrita pelo pintor e, ocupando o exato centro da tela, temos a capivarinha comendo placidamente os arbustos frescos.

 

A presença de uma planta numa das extremidades da tela e a assinatura entremeada aos elementos naturais são marcas presentes na maioria das suas telas, dando-lhe uma espécie de marca própria. Segundo Pedro Lago (2005, p. 24) esta composição “[...] onde se misturam elementos vegetais e árvores no primeiro plano, que servem de realce (ou repoussoir), ou seja, dão ao observador a impressão de distanciamento em relação a cena principal [...]”

 

Todos estas plantas e animais que não eram conhecidos na Europa causavam grande admiração e curiosidade pelo exótico, anteriormente os novos países faziam parte de uma vasta imaginária criada, então, a produção de livros e pinturas sobre isso contribuiu enormemente para divulgar este novo mundo, sendo considerado Post um dos seus primeiros paisagistas.

O pintor é mais sutil que outros colegas ao representar as cores proporcionadas pelo sol tropical, o que não quer dizer necessariamente que ele não tenha se maravilhado com elas ou manifeste desinteresse pelo pitoresco, levantamos outras hipóteses: o fato de uma tradição apreendida em seu país de origem e provavelmente na sua formação (cânones holandeses), o dia realmente podia estar nublado/chuvoso, faltavam pigmentos adequados (a cor pode ter esmaecido ao longo dos anos por causa da má conservação), tentativa de representar a paisagem adaptando as cores reais vistas aqui às já conhecidas pelos europeus para não causar um estranhamento ainda maior (lembrando que as telas tinham função decorativa), ou ainda a uma transcendência da simples paisagem para representações simbólicas e experiências estéticas superiores com o auxílio dos tons nebulosos que dariam um ar de mistério para a obra.

O Post “brasileiro”, o jovem artista em sua primeira fase, alia grande precisão ao imediatismo da descoberta, o que torna esses primeiros quadros não só raros testemunhos de uma realidade jamais observada, como também obras de arte de qualidade excepcional, nas quais a aplicação de uma técnica tradicional aprendida na Holanda representa pela primeira vez a natureza americana. (LAGO, 2005, p.34)

Pesavento (2004, p. 2-4) esclarece que a construção da imagem do nosso país se dá através do olhar estrangeiro, pela criação da paisagem que é uma visão sensível da natureza fornecida pelo pintor, de uma representação que nos é dada e não pensada aqui.

Como todo e qualquer sistema histórico de representação coletiva, o imaginário se expressa por discursos e imagens que tomam como referente o real, mas que são capazes de negá-lo, contorná-lo, ultrapassá-lo. Assim, toda construção imaginária do mundo comporta um conteúdo de ficção, que implica em escolhas, seleção, criatividade, negação, mas que qualifica e confere significação à realidade e que se legitima pela credibilidade. (PESAVENTO, 2004, p. 1-2)

A historiadora Carla Mary S. Oliveira (2005, p. 22) alerta para a necessidade de perceber as intenções destes primeiros artistas ao se analisar as obras e sua contribuição histórica, pois as cenas tinham motivações político-econômicas e “[...] não se constituem em “documentos” do Brasil como uma terra sem males que esperava os viajantes para dar-lhes prazer, deleite e riqueza: são, na verdade, uma expressão alegórica barroca, pois mostram um mundo exótico produzido como “registro” teatralizado do real.”

 

A escolha pela observação desta tela ao invés de outras que seriam talvez mais representativas da natureza e cultura do “Brasil Holandês” dá-se justamente pelo entendimento da criatividade na composição, pelo fato do pintor ir além da missão documental, tomando a liberdade de relegá-la a segundo plano.

 

Consideramos importante a contribuição histórica e artística do pintor e do seu conjunto de obras, que divulgaram para os demais países e registraram para a posteridade os elementos naturais do nosso país e do seu idiossincrático governo nesta fase, permitindo-nos vislumbrar e compreender melhor este período que, se foi breve em tempo, foi muito rico em produção cultural.

 

Esta paisagem motiva o espectador a um olhar primevo sobre si, faz com que ilumine e desbrave suas outras facetas, sendo que para isso deve voltar-se para a sua profundidade, mergulhar no seu rio interior e decidir se quer atravessar. Representa um país que descobre-se Brasil e, sob certo aspecto, um povo que ainda hoje descobre-se brasileiro.

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

CHEVALIER, Jean.  Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números.  23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

 

CHILVERS, Ian.  Dicionário Oxford de Arte.  São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

LAGO, Bia e LAGO, Pedro Correa do. Frans Post (1612-1680): obra completa.  Rio de Janeiro: Capivara Editora Ltda, 2009.

 

LAGO, Pedro Correa de; DUCOS, Blaise.  Frans Post: o Brasil na corte de Luis XIV.  Catálogo da Exposição realizada no Museu do Louvre. Milão: Editora 5 Continents, 2005.

 

OLIVEIRA, Carla Mary S.  O Brasil seiscentista nas pinturas de Albert Eckhout e Frans Janszoon Post: Documento ou invenção do Novo Mundo?  Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Portugal: Instituto Camões, 2005. p. 1-23.

 

PESAVENTO, Sandra Jatahy.  A invenção do Brasil: o nascimento da paisagem brasileira sob o olhar do outro.  Revista de História e Estudos Culturais. Porto Alegre: UFRGS, 2004. Ano 1, vol 1, n. 1, p. 1-34. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/pdf/Artigo%20Sandra%20J%20Pesavento.pdf>. Acesso em: 14 out. 2011.

 

SILVA, Leonardo Dantas.  João Maurício de Nassau e os Livros.  Disponível em: <http://www.institutoricardobrennand.org.br/pinacoteca/fpost/mauricio.htm>. Acesso em: 13 out. 2011.

 

Notas:

 

[1] Tem-se conhecimento de outras obras deste período através de cópias feitas por Thiéry (séc. XVIII) e do livro editado por Caspari Barlaei, denominado "História dos Feitos Recentemente Praticados Durante Oito Anos no Brasil e Noutras Partes sob o Governo de Wesel, Tenente-General de Cavalaria das Províncias-Unidas sob o Príncipe de Orange”, que está disponível em <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasraras/barleus/index.htm>, acesso em 14 out. 2011.

(voltar ao texto na nota 1)

 

 

Notas
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