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Elas estavam lá:

considerações sobre a mulher em 4 mil anos de cultura

Um grito lancinante ecoa e todos sabem que vai acontecer novamente. Do ventre, inchado por longo tempo, será expelido mais um membro do grupo. O parto, na Pré-História, durante um longo tempo, foi algo mágico: “As mulheres eram capazes de garantir a descendência com seus próprios corpos e de alimentá-la usando apenas seus corpos” (NOVOTNY, 1999). A mulher também era portadora de outro mistério: mesmo sem se ferir, sangrava entre as pernas regularmente e não morria. Na Pré-História, o sangue menstrual, por ser incompreensível, gerava temor e era tido como algo pertencente ao mundo da feitiçaria e da alquimia (TANNHILL, 1983, apud SEIXAS, 1998). O mais provável é que os partos acontecessem em áreas comuns, segundo Elisabeth Beausgung (2000), mas a autora destaca que, em várias escavações, como na Dinamarca, foram encontradas pequenas construções, a alguma distância dos acampamentos, nas quais há indícios de que ali as mulheres ficavam para dar à luz e durante o período menstrual.

Aprendi na escola que as mulheres começaram a domesticar animais e plantar, enquanto os homens caçavam, devido à constituição física. Estudos mais recentes mostram que não foi bem dessa maneira que as coisas aconteceram. A divisão do trabalho entre gêneros se deu porque elas precisavam restringir sua área de deslocamento pelo fato de estarem, geralmente, grávidas ou amamentando. De acordo com Novotny (1999), a domesticação dos animais mostrou, finalmente, a relação entre cópula e concepção. Com o advento das primeiras noções de propriedade privada, os homens buscaram legitimidade sobre a descendência e passaram a controlar a vida das mulheres, especialmente sua sexualidade, para assegurar o conhecimento da paternidade.

Quando, criança, eu pensava em Pré-História, imaginava homens cobertos de pelos enfrentando bisões em lutas poderosas. As mulheres não faziam parte de meu imaginário, que se alimentava de uma visão parcial, de uma história feita por homens [1]. Apenas na década de 1980, começaram, de forma sistemática, estudos com enfoque na arqueologia de gênero [2], e aquela mulher começou a sair do fundo das cavernas para se mostrar. Não somente ela, mas as mulheres da Antiguidade, do medievo, de tantos outros momentos da história, até então povoada por heróis orgulhosos de seu falo e sua força. Neste ensaio, trago alguns exemplos de como a mulher apareceu, na história, na arte e na literatura antigas, geralmente de maneira pouco lisonjeira e com forte carga misógina [3].

A epopeia Gilgamesh é considerada o mais antigo texto produzido pela humanidade. Datada do século VII a.n.e., conta a história do soberano de Uruk, “o rei que tudo sabia e que percorreu as nações do mundo”, passada antes do grande dilúvio (ANÔNIMO, 1992, p. 91). Feito com perfeição pelos deuses, ele era invencível, lascivo e não pensava em seu povo. Os deuses ouviram os lamentos dos homens e enviaram à terra, feito a partir do barro, Enkidu, “com as virtudes de um deus da guerra, rústico, mas desconhecedor das coisas humanas” (ANÔNIMO, 1992, p. 91). Ele era puro, vivia em harmonia com a natureza e os animais, a quem defendia contra os caçadores. Por isso, era considerado um causador de problemas. O que fazer? Contratar uma “rameira”, para ensiná-lo “as artes da mulher” (ANÔNIMO, 1992, p. 96). Depois de uma semana com ela, Enkidu já não era mais puro, os animais se afastaram, ele passou a comer a comida dos homens da cidade, a vestir-se como eles. Confesso que fiquei surpresa com essa manifestação misógina tão vívida em um dos textos fundantes da humanidade. Já na Mesopotâmia, a “arte da mulher” seria enganar, desencaminhar, despurificar, enfraquecer.

Dilúvio, homem feito a partir do barro, mulher que força esse homem a sair do seu estado puro. Eu já ouvi essa história... John Bailey (1970) fez um belo ensaio mostrando os pontos de conexão entre Gilgamesh e o Gênesis. Para vários historiadores, a história do rei de Uruk foi uma das fontes em que beberam escritores do Antigo Testamento. Analisando a figura feminina, Bailey mostra como ela, apesar de estar lidando com um homem forte, conseguiu manejá-lo de acordo com seus propósitos. Ela o seduziu, mas depois a relação mudou; ela passou a tratá-lo como uma mãe, dando-lhe comida, era sua única companhia. Ainda assim, não havia uma relação de amizade entre eles. Enkidu desenvolveria esse sentimento com Gilgamesh. Ela não merecia essa distinção, era uma prostituta. A prostituta não tem nome. De acordo com Bailey, porque sua função está clara. Eu volto ao aspecto misógino do texto: ela não tem nome, possivelmente, porque já foi caracterizada como “mulher”, e isso basta, uma vez que são todas iguais e esta não se constitui como um sujeito, não tem características próprias.

Saio do Oriente em direção à Grécia Antiga, terra da democracia, da cultura, da lógica e de mulheres nas quais não se deve confiar. Em O trabalho e os dias, Hesíodo (2006) trata de deuses, homens e misoginia. Ao narrar o mito de Prometeu e Pandora, conta que Zeus queria punir a humanidade, a quem Prometeu concedeu o conhecimento sobre o fogo. Mandou, então, que se criasse Pandora, que recebeu de cada deus uma qualidade – era a mulher perfeita. Zeus deu a ela uma ordem: que não abrisse, de modo algum, uma certa caixa. Como ele queria que a caixa fosse aberta e que os males nela contidos se espalhassem pelo mundo dos mortais, criou uma mulher, que, curiosa “por natureza”, fez o que foi ordenado que não fizesse.

Segundo Commelin [19--], Zeus enviou a caixa para Prometeu por meio de Pandora e este, desconfiado, recusou o presente, mas seu irmão, Epimeteu, encantado com a beleza de Pandora, casou-se com ela. Hesíodo narra que a caixa já estava na casa dos irmãos, mas fechada, o que, para Marie Conn (2003), coloca maior responsabilidade sobre Pandora. Para a autora, Hesíodo descreve Pandora, definitivamente, como elemento de desequilíbrio, de descontrole da humanidade sobre o mal. Ela é desnecessária naquela sociedade, secundária, criada depois dos homens como... Eva.

Assim como a predecessora prostituta de Uruk e Eva, que virá a carregar nas costas todos os pecados do mundo, Pandora foi responsável pela desgraça humana: “Como Pandora, Eva representa um erro na criação” (CONN, 2003, p.9). Por isso, Hesíodo adverte os amigos e os irmãos contra a mulher “de insinuadas ancas” e afirma que “quem em mulher confia em ladrões está confiando” (HESÍODO, 2006, p.49).

Segundo Hans Licht (1969), as mulheres gregas casadas “tinham completo controle dos afazeres domésticos”. O autor fala isso como se destruísse a imagem das pobres e tristes gregas fechadas em casa. Obviamente, estou fazendo uma leitura com olhos contemporâneos, mas esse controle da vida íntima não me parece suficiente “prova” de que as gregas não eram consideradas cidadãs de segunda classe. As aventuras narradas na Ilíada e na Odisseia são outros “dados” usados por Licht. Para ele, Homero não teria criado personagens femininas tão fortes se não houvesse um correspondente na realidade. Para ficar em apenas um exemplo, que, reconheço, é um corte bastante parcial, destaco o Ulisses desejoso de voltar aos braços de Penélope, em Ítaca. Ela ficou no palácio, tecendo e destecendo uma tapeçaria por dez anos e tentando livrar-se de homens sedutores. O marido ganhou o mundo, em aventuras as mais diversas, e resistiu às sereias, novamente o feminino como sedução, como o que desvia o homem reto de seu caminho. Além disso, viveu por um ano com Circe, filha do Sol, com quem teve dois filhos. Obrigado, obviamente, pois ela era mais uma das figuras femininas dissimuladas da mitologia, conhecedora de magias e poções, assassina e especialista em transformar pessoas em animais. Penélope? Ela tinha o domínio do lar.

A partir do século IV, principalmente, o concubinato e a visita a prostitutas eram bastante tolerados na Grécia. Os homens tinham, no entanto, que procurar não ter filhos fora do casamento, uma vez que as terras eram poucas e haveria problemas de herança e sucessão. As leis antigas, segundo Glotz (1988), incentivavam a limitar o número de filhos. Filhas mulheres não eram desejadas. O aborto era um método utilizado, desde que o homem o determinasse. A mulher que o fizesse sem anuência masculina era passível de punição. Se a criança nascesse, poderia, ainda, ser morta ou abandonada. Não havia restrições filosóficas para essas práticas. Platão, por exemplo, dizia que o importante era preservar a pureza da raça e evitar que a luxúria elevasse o número de cidadãos (GLOTZ, 1988). A família era fundamental porque organizava a administração dos bens e da herança, garantia novas gerações de cidadãos e transmitia os códigos morais. De acordo com Finley (1963), a família não era o local para encontrar companhia física, intelectual e afetiva. Os homens a buscavam fora, geralmente com cortesãs ou outros homens. A bissexualidade, para os homens, não era repudiada. Eles tinham na família a garantia material e nos seus camaradas alguém para partilhar sua vida íntima e intelectual (FINLEY, 1963). Permito-me fazer uma conexão com a história de Enkidu, que também não encontrou na mulher alguém digno de um sentimento de companheirismo.

Nas classes pobres gregas, a situação das mulheres era diferente, destaca Finley. Por uma necessidade econômica, elas tinham de trabalhar, ajudar na lida do campo e do comércio, o que lhes dava um certo grau de igualdade. A moral sexual, no entanto, era a mesma: os homens podiam ter intercursos fora do casamento; o crime de adultério era, unilateralmente, cometido pela mulher casada que se relacionasse com alguém que não o marido (FINLEY, 1963).

As obras de arte na Grécia, como observa Clark (1995), mostram que o homem buscou se aproximar de um ideal de perfeição:

“[...] em certas épocas, o homem tomou consciência de algo sobre si mesmo – corpo e alma – que transcendia a luta diurna pela vida e luta noturna contra o medo. Sentiu também a necessidade de desenvolver estas qualidades de pensamento e de sentimento para se aproximar o mais possível de um ideal de perfeição: razão, justiça, beleza física, todas em perfeito equilíbrio [...] através de mitos, através de danças e canções, através de sistemas de filosofia e através da ordem que impôs ao mundo visível. Os produtos de sua imaginação são também a expressão de um ideal” (p.23).

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A tradução trata do “homem”, não da “humanidade” ou da “sociedade grega”. Neste caso, o sexismo da língua tem correspondência no modo como se articulava a Grécia Clássica. O masculino era o centro, era o que designava o intelectual, o ideal, o belo. O século V a.n.e. foi marcado pela revolução da escrita e da constituição do cânone grego na arte. O drama grego, um dos principais propagadores didáticos do mito, atingiu o auge, na transição da cultura oral para a letrada. A fonte começou a ser a mente, não mais a boca, afirma Havelock (1996). Às mulheres, no entanto, essa revolução não chegou da mesma forma. Mesmo as da elite, em sua maioria, não sabiam ler. Elas deveriam saber tocar algum instrumento e dançar, para agradar ao marido. O lugar da mulher na sociedade grega é tratado, de maneira bastante interessante, em Mulheres no parlamento [4], comédia de Aristófanes. Diante de uma Atenas derrotada e em crise, o dramaturgo propôs que as mulheres tomassem o poder, uma vez que tinham experiência na administração da casa. Elas seriam a última salvação da cidade, chamadas para tomar parte na vida de Atenas para além dos limites domésticos. A oradora da peça fez a exortação: “É às mulheres que se deve confiar a cidade. Tanto mais que, em casa, é a elas que confiamos o governo” [5]. O poder feminino, na Grécia, só foi alcançado no palco. Na vida cotidiana, as mulheres estavam acima apenas dos escravos, e não tinham o direito de descansar no berço da democracia.

Ainda haveria Roma, Egito, China... Minha intenção, no entanto, é bastante modesta. Como expliquei, inicialmente, pretendo pinçar alguns exemplos de como é entendida, explicada, escondida nos registros históricos a questão feminina. Por isso, agora, proponho um salto no tempo, até a Idade Média, quando as mulheres, descendentes de Eva, foram apontadas como responsáveis pelos males do mundo. Mostrei, em alguns exemplos, que a misoginia remonta à Antiguidade. No entanto, foi no medievo que se desenvolveu um virulento antifeminismo (BLOCH, 1995).

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“[...] em certas épocas, o homem tomou consciência de algo sobre si mesmo – corpo e alma – que transcendia a luta diurna pela vida e luta noturna contra o medo. Sentiu também a necessidade de desenvolver estas qualidades de pensamento e de sentimento para se aproximar o mais possível de um ideal de perfeição: razão, justiça, beleza física, todas em perfeito equilíbrio [...] através de mitos, através de danças e canções, através de sistemas de filosofia e através da ordem que impôs ao mundo visível. Os produtos de sua imaginação são também a expressão de um ideal” (p.23).

A Bíblia era considerada, por muitos, o livro sobre a história da humanidade. Assim como, na visão hebraica, os atos de deus e as coisas da vida eram uma mesma realidade, na cristandade é difícil separar o que é lenda e o que é história (TARNAS, 2008). Se estava escrito na Bíblia que Eva rompeu a aliança com deus e que todas as mulheres depois dela deveriam pagar por isso, que fosse feito. São João Crisóstomo já advertia, no século IV, que “a beleza da mulher é a maior das armadilhas” (apud TREVISAN, 2003, p.85).

Um dos grandes ideólogos da cristandade, Santo Agostinho era um bon vivant, sempre cercado por festas e amantes. Depois de anos de luxúria, ele contou em suas Confissões: “Era para mim mais doce amar e ser amado, se podia gozar do corpo da pessoa amada” (1994, p.42). Para ele, as “paixões depravadas” (p.49) violavam a união entre deus e os homens. E quem era culpado por essas paixões depravadas? A mulher. Depois que encontrou deus e tornou-se padre, Agostinho passou a considerar o toque feminino algo “sórdido, sujo e horrível” (apud TREVISAN, 2003, p.84). De acordo com o teólogo Bernard Häring, “depois de Santo Agostinho, as relações conjugais eram em si degradantes, só justificadas em ordem à procriação” (apud TREVISAN, 2003, p.84). Agostinho chegou a escrever que “nada afasta mais o espírito do homem das alturas do que os carinhos da mulher e aqueles movimentos do corpo, sem os quais um homem não pode possuir sua esposa” (apud TREVISAN, 2003, p.85). Novamente, faço uma digressão para relembrar Hesíodo, que falava na “mulher de insinuadas ancas”. Parece-me que o movimento corporal feminino, desde a Antiguidade, gerava essa ambiguidade sobre o masculino. De fato, como afirma Trevisan, “a sensibilidade medieval oscila entre dois polos: a atração e a repulsão pelo corpo feminino” (2003, p.85).

George Duby, citado por Trevisan (2003), explicita que a sociedade feudal do século XI era uma sociedade sem mulheres. “A cultura do século XI ignora a mulher. A sua arte não lhe dá um lugar, ou quase. Não há figuras de Santas; ou então são ídolos de ouro com olhos de vespa” (p.85). Às figuras femininas era atribuído, também, o papel de servir de aviso aos pecadores. Encarnando figuras demoníacas, esculturas com contornos femininos eram postadas nos frontões das igrejas em cenas aterrorizantes e repulsivas.

Da mesma forma como a historiografia privilegia os homens (e os homens da classe social mais alta), quando as mulheres aparecem, são aquelas que fazem parte da elite. Apesar de as camponesas serem a maioria, há poucos registros sobre elas. O que se sabe é que sua força de trabalho era importante para a economia rural e, quando casadas, exerciam as atividades com os maridos nas terras do senhor feudal (MACEDO, 2002). A produção de tecidos era exclusivamente feita por mulheres. Assim como na Grécia, também na Idade Média a administração da casa era uma incumbência feminina. Os serviços domésticos eram realizados por servas e escravas, compradas como mercadoria principalmente no sul da França e na península ibérica. Eram procedentes, principalmente, do Oriente ou de regiões periféricas da Europa. A escravidão feminina, nesse período, “esteve sob domínio, orientação e condução de mulheres livres, para satisfação e lucro de mercadores de escravas” (MACEDO, 2002, p.39).

A religião era uma opção para as mulheres que queriam fugir de casamentos arranjados, por exemplo. Na vida monástica, podiam ter contato com a instrução que lhes era muitas vezes negada fora da Igreja. Várias mulheres foram atraídas pelos chamados movimentos hereges, que se distanciavam da Igreja por acreditar que o verdadeiro cristianismo estava na opção pelos pobres e no ascetismo, diferentemente do que era visto em Roma, tomada pela corrupção e pela riqueza. Esses movimentos se fortaleceram, principalmente, a partir do século XI, na França, na Itália e na Alemanha. De acordo com Macedo (2002), uma das possíveis explicações para o movimento ter atraído tantas mulheres foi o fato de elas encontrarem neles um espaço para pregação, estavam em patamar igual ao dos homens.

E que dizer das prostitutas, desde sempre colocadas no subsolo social? Mantiveram-se trabalhando durante o medievo, e as atitudes das autoridades vacilavam entre a punição (com prisão e açoite público) e uma certa benevolência. Elas estavam nas cidades, nos feudos, acompanhavam exércitos. Um prático Santo Agostinho explica o papel social dessas mulheres: “Suprime as meretrizes e as paixões dominarão o mundo” (apud MACEDO, 2002). Elas eram as “de vida fácil”, “mundanas”, “rameiras”, mas sempre um “mal necessário” para apaziguar os “instintos” masculinos.

A literatura medieval é um testemunho fundamentalmente masculino. Como os textos eram elaborados, na grande maioria, por padres e artistas, trazem uma imagem idealizada da mulher, geralmente negativa. Já falei em misoginia e virgindade. E essas são duas palavras-chave quando se trata da Idade Média. Como bem resume Macedo (2002), os comportamentos femininos eram classificados e descritos de acordo com critérios religiosos e morais. Por exemplo: a mulher luxuriosa e pecadora (que corrompe o homem), a mulher casta e virtuosa (que personifica a salvação), e a mulher ardilosa por natureza (que trapaceia o homem). Sempre um quadro feito a partir do olhar masculino. Com o advento da literatura cortês, que se desenvolveu com o refinamento das cortes europeias, as mulheres passaram a ser o centro de textos e poemas. Era sempre, no entanto, uma mulher idealizada, esvaziada de individualidade. Como explica Bloch (1995), na visão cortês a satisfação era adiada em nome da pureza espiritual, o que corroborava a visão cristã de amor (p.148). A virgindade era uma questão central, mas complicada. O simples pensar na virgem com desejo já impugnava sua virgindade. Ou seja, não havia como pensar na virgindade sem que isso implicasse sua perda. Por isso, geralmente, as mulheres eram exaltadas nos poemas, mas logo ofendidas, destratadas, ou porque não correspondiam ao amor – e isso trazia sofrimento ao poeta – ou porque correspondiam – o que as conspurcava e as tornava indignas do sentimento que ele lhes devotava.

Fiquei em dúvida se seria demais chamar de contraponto, devido à escassez de registros e à esmagadora diferença no volume de produção. No entanto, considerando também o espaço dado para homens e mulheres, creio que seja correto chamar de contraponto as manifestações, ainda que limitadas, de mulheres que conseguiram, por meio da palavra, registrar um outro olhar. As poetisas dos séculos XII e XIII, as trobairitz (trovadoras), compunham fábulas, canções curtas e narrativas. Nas histórias de Maria de França, por exemplo, as mulheres sempre tinham um papel decisivo e – apesar de, geralmente, não serem protagonistas – personalidade. São mulheres que amam, desejam e lutam, não ficam espiando a vida da janela do castelo. Não há uma subversão da lógica cortês, mas o papel feminino é sensivelmente modificado (MACEDO, 2002). Cerca de dois séculos depois, em 1399, Cristina Pisan protagonizou, com João Meung, a primeira polêmica literária da história do Ocidente, segundo Macedo (2002), e defendeu publicamente as mulheres, alvo frequente, como visto acima, da literatura cortês. Como bem observa Deplagne (2008), “Enquanto os troubadours encontravam no fazer poético uma maneira de ascensão social, uma motivação de ordem profissional, as trobairitz encontravam nessa atividade um meio de expressão, de se tornarem visíveis; portanto, razões pessoais”.

Apesar de não ter conseguido evitar, em alguns momentos, tratar de casos específicos, meu interesse não era me deter em mulheres que entraram para a história oficial, os “grandes nomes”, mas buscar indícios de como se conformou a ideia de feminino ao longo de milhares de anos de cultura. Embora Peter Burke (2005) critique a fragmentação em disciplinas como história das mulheres, da população, da ciência, das ideias, parece-me que a historiografia, em geral, ainda não encontrou outra forma mais eficaz de dar conta de temas que ficaram obscurecidos. São poucos os relatos e, apesar do esforço de pesquisadores, as mulheres ocupam espaço restrito; na maioria das vezes, resignam-se às poucas páginas sobre a vida privada. Falta muito, portanto, para que sejam consideradas mais que uma nota rodapé.

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TREVISAN, Armindo. O rosto de Cristo. Porto Alegre: AGE, 2003.

NOTAS

[1] Simone de Beauvoir resume bem essa visão: “O guerreiro põe em risco a própria vida para aumentar o prestígio da horda e do clã a que pertence. Com isso, prova de maneira convincente que a vida não é para o homem o valor supremo, que ela deve servir a fins mais importantes que a própria. A maior maldição da mulher é estar excluída das expedições guerreiras. Não é dando a vida, é arriscando-a que o homem ergue-se acima do animal; eis por que, na humanidade, a superioridade é outorgada não ao sexo que engendra e sim ao que mata”. Cf. BEUAVOIR apud DISCONZI, 2002. voltar ao texto na nota 1

 

[2] A partir de um enfoque feminista, a questão de gênero foi usada como categoria analítica para a pesquisa das relações sociais, de trabalho e poder na Pré-História, em oposição ao viés androcêntrico geralmente utilizado na academia. Os tensionamentos existentes e as barreiras encontradas para a constituição dessa abordagem, que envolve principalmente a arqueologia, são tratados em CONKEY, Margaret W; GERO, Joan M. (Ed.). Engendering archeology: women and prehistory. Cambridge: Basil Blackwell, 1991. voltar ao texto na nota 2

[3] Irei utilizar o conceito tal como descrito por R. Howard Bloch. Misoginia como definição antifeminista, essencialista, generalista e desfigurada da mulher. Uma característica da misoginia, de acordo com o autor, é colocar a mulher como um substantivo coletivo e eliminá-la enquanto sujeito histórico, como se a característica de uma determinasse todas as mulheres. Cf. BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Trad. Claudia Moraes. Rio de Janeiro: 34, 1995. voltar ao texto na nota 3

[4] A peça data de 392 a.n.e. Atenas perdera a guerra e enfrentava uma crise política e econômica. Cf. SOUSA E SILVA, Maria de Fátima. Políticos e mulheres na comédia grega. Conferência proferida na Faculdade de Letras do Porto, em 1986. voltar ao texto na nota 4

[5] ARISTÓFANES apud SOUZA E SILVA, 1986. voltar ao texto na nota 5

COMO CITAR ESTE TEXTO

VARGAS, Rosane.  Elas estavam lá: considerações sobre a mulher em 4 mil anos de cultura. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2017. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/elasla>. Acesso em: [dia mês. ano].

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