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Estética do desequilíbrio:

a desmaterialização da arte em Luiz Camnitzer

Izis Abreu (2017)
Texto

Luis Camnitzer nasceu na Alemanha, na cidade de Lübeck, no ano de 1937. Ainda criança mudou-se com os pais para o Uruguai, para fugir do regime nazista. Desde então, dicotomias como expatriação/repatriação, totalitarismo/democracia, nacionalismo/globalização, esquerda/direita permeiam seu imaginário, integrando seu pensamento artístico (PÉREZ-BARREIRO, 2007).

Camnitzer é uma figura expressiva da arte conceitual, não só pela visibilidade de seu trabalho, mas por seu engajamento na construção de uma arte com identidade cultural latino-americana. Participou de grandes exposições, como a Bienal de Veneza e a XI Documenta de Kassel. Suas obras compõem o acervo de relevantes museus da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina. Licenciado em escultura e arquitetura pela Faculdade de Belas Artes da República do Uruguai, o artista uruguaio aproximou-se do conceitualismo quando se mudou para Nova Iorque em 1964, onde integrou o grupo The New York Graphic Workshop, entre 1964 e 1970.

Além de possuir uma expressiva produção artística, Camnitzer também é referência como arte educador. A convergência de princípios ideológicos em sua produção artística tais como consciência política, diversidade cultural, firmeza ética e, sobretudo, seus ideais de democratização da arte através da exploração de seu potencial tautológico foram decisivos para que Camnitzer fosse convidado para ser o curador pedagógico da 6º Bienal do Mercosul, no ano de 2007, em Porto Alegre. O projeto desenvolvido por Camnitzer nessa edição da Bienal revela a consistência de seu legado artístico, legitimando-o como um dos expoentes do conceitualismo latino-americano. O sucesso obtido pelo projeto pedagógico desenvolvido por ele para a Bienal lhe rendeu a assinatura do projeto educativo da Fundação Iberê Camargo, formatado nos mesmos moldes.

Camnitzer está entre os artistas que nas décadas de 60/70 protagonizaram o processo de desmaterialização da arte ao contestar sua natureza. Processo preconizado por Marcel Duchamp e que representa um marco divisório para a história da arte. A concepção intrínseca aos ready-made do artista francês, propostos a partir de 1917, lançou as bases para um novo e revolucionário/utópico modo de pensar arte. Para Joseph Kosuth autor de A arte depois da filosofia (1969), texto que apresenta as diretrizes da arte conceitual, “Duchamp tem o crédito de ter dado à arte sua identidade” (KOSUTH, 2006, p.217).  Ao provocar uma crise nos valores do campo artístico, as proposições duchampianas puseram em discussão a noção de obra, permitindo que, anos mais tarde, surgissem debates acerca de sua natureza e sua função.

Em Duchamp a arte renúncia de seus atributos morfológicos e passa a indagar sobre sua função. A decadência dos princípios modernistas perante uma ideia de arte tautológica, calcada em proposições linguísticas exige preceitos de caráter também linguístico. O objeto de arte passa a ser visto, sobretudo, como solução para expressar o pensamento do artista. Com isso, a arte assume o papel de comunicadora, servindo-se de diferentes linguagens para transmitir seus conceitos. O artista, por sua vez, assume o papel, historicamente reivindicado, de teórico e crítico de arte (LIPPARD E CHANDLER, 2013).

Os novos paradigmas visavam à aproximação da arte com a realidade cotidiana; propunham a substituição da fruição sensorial por uma fruição cognitiva; o objeto de arte torna-se um instrumento de reflexão para a produção de conhecimento. Kosuth (2006) entende que a arte passa a existir conceitualmente na medida em que se afasta de sua natureza morfológica para ater-se à sua função, isto a torna conceitual por natureza. O movimento é deflagrado nos Estados Unidos e Inglaterra e logo é incorporado nos países latino-americanos, porém com algumas especificidades.

Para Mari Carmem Ramirez (2007), as práticas conceituais na América Latina apresentam características que as classificam como algumas das respostas mais criativas acerca da problemática da natureza e da função da arte. A originalidade do conceitualismo nesses países se dá em razão da “complexa articulação entre as necessidades 'ex/cêntricas' locais e as tendências centrais, uma interação não excêntrica ou formalista, cuja dialética envolve um circuito recíproco de intercambio cultural” (RAMIREZ, 2007, p.186). Entre os principais exemplos estão: a Nova Objetividade Brasileira, no Brasil; o Tucumán Arde, na Argentina; o Não-Objetualismo, na Colômbia; e os artistas que residiam em Nova Iorque, mas desenvolviam um conceitualismo latino-americano, como o New York Grafic Worshop do qual Luis Camnitzer foi integrante. Outra característica apontada pela autora é a heterogeneidade das propostas artísticas orientadas pela diversidade política, econômica e cultural dos países do bloco. Desta maneira, a especificidade de cada região era utilizada a serviço da radicalização dos questionamentos sobre a instituição arte, mas sempre em diálogo com os problemas do contexto social no qual os artistas estavam inseridos. A partir disso a autora identifica pelo menos três aspectos que diferenciam a produção conceitualista da América Latina das práticas anglo-americanas.

O primeiro aspecto é o perfil ideológico, pois se trata de uma arte pensada em relação com a sociedade. A arte na América Latina se tornou uma questão cultural mais ampla que buscava soluções coletivas visando a transformação do mundo social. Outro aspecto apontado era a relação paradoxal e conflituosa com a ideia de desmaterialização do objeto, princípio fundamental da arte conceitual norte americana, em prol de uma proposta linguística ou analítica. Para Ramirez (2007), os artistas latino-americanos inverteram esse paradigma utilizando inúmeras táticas: o objeto assume um formato de produção em massa ou ready-made, funcionando como meio propagandístico antidiscursivo que se contrapõe às funções semióticas do objeto artístico; outra tática era a abordagem cognitiva/perceptiva, cujo objetivo era instigar o espectador, fazendo-o participar da obra, a fim de transformar seu modo de apreensão da arte e do mundo.

No Brasil, esses preceitos eram defendidos pela Nova Objetividade Brasileira. Outra estratégia era o uso de teorias da comunicação e da informação na investigação dos mecanismos pelos quais os significados são transmitidos ao observador. Os artistas se apropriavam de estruturas tecnológicas ou de comunicação em massa já existentes como, por exemplo, o jornal impresso, o rádio e a televisão para produzir uma obra em que o medium é a mensagem. O texto Arte contemporânea colonial, de Luis Camnitzer, publicado no jornal Marcha é um exemplo dessa tática [1].

Nota 1

Outro exemplo dessa 'estratégia de guerrilha', conforme denomina Artur Freitas, são as proposições Clandestinas e De 0 às 24 horas, do português radicado brasileiro Antônio Manuel, ambas de 1973. Artur Freitas (2013) considera a ação de introduzir um elemento de arte dentro de um processo industrial de jornal um tipo de “inteligência industrial” que interioriza uma ação política na prática artística (FREITAS, 2013, p.170). Para o pesquisador, os trabalhos de Antônio Manuel, e, podemos dizer, por extensão, os de Camnitizer, são quase uma “charada hermenêutica”, pois se apresentam como “problema de linguagem”, um “desafio de interpretação”. Objeto de arte ou peça gráfica? Devemos vê-lo ou lê-lo? Trata-se de trabalhos artísticos cuja estrutura é fundamentalmente ambígua, pois funcionam ao mesmo tempo como obra e como texto ou peça jornalística. Freitas destaca uma virtude desse “problema de linguagem”, observando que:

[...] ela foi criada justamente com base nessa ambiguidade. Aí sua força de sentidos, cumpre entender, seu jogo aberto entre o “ver” e o “ler”. Diante disso, temos portanto uma obra complexa: uma estrutura de papel e tinta que não se mostra de pronto, por inteiro. É preciso tempo para vê-la integralmente, tê-la nas mãos, folheá-la de fato ou, como talvez disse Umberto Eco, é necessário “circunavegá-la” (FREITAS, 2013, p.182-183).

Por fim, o terceiro aspecto do conceitualismo latino-americano é a redefinição do observador como parte integrante das proposições. Para Ramirez (2007), através de sistemas de comunicação alternativos, os artistas participantes, pertencentes a regiões e culturas distintas, pretendiam contra divulgar mensagens ou transmitir valores ao observador.

Arte Contemporânea Colonial exerce forte crítica ao processo de mercantilização da arte, assim como ao mecanismo de opressão cultural operado pelas nações que controlam o mercado econômico a fim de manter sua hegemonia.  O autor pontua a forte influência do sistema das artes sobre a arte produzida nos países periféricos, que por sua condição histórica de "colônia" não conseguem se libertar das amarras impostas pela "metrópole". Suas proposições visam dissolver a herança opressora deixada pela dominação imperialista, mas camuflada sob o conceito de “mundo sem fronteiras”, ou, para usar um termo mais atual, a ideia de “aldeia global”, conceitos deturpados em função de interesses unilaterais. Como um exemplo da dominação da "cultura metropolitana”, ele cita uma antiga tradição uruguaia, ainda presente em 1964, quando de sua partida para os EUA, que usava o assovio em público como sinal de desaprovação. Ao retornar à sua terra, após cinco anos afastado, o jovem artista percebe que a velha tradição tomara a mesma conotação que possui nos Estados Unidos da América, ou seja, de aprovação (CAMNITZER, 2006, p.266-267).

Os preceitos defendidos pelo autor em seu texto/obra mostram sua adesão à busca pela função da arte. O artista a vê como um mecanismo capaz de conceber uma identidade cultural para esses países que, mesmo após sua consolidação como nações independentes, permaneceram subjugados culturalmente. Camnitzer defende que a arte pode promover importantes e profundas transformações sociais, uma vez que pode influenciar e ser influenciada pelo contexto social e político do local onde é produzida.  Acredita que a noção de arte como linguagem, seguida da participação efetiva do público no processo artístico, seja a melhor estratégia de resistência à homogeneização promovida pela indústria cultural. Para ele a arte pode ser vista como uma ferramenta de construção de conhecimento, com vistas à liberdade, para que todas as pessoas possam desenvolver e exercer toda a sua potencialidade expressiva, política, social, cultural e intelectual.

O texto inicia com um alerta de Camnitzer sobre os riscos da transculturalização e sobre a fragilidade do sistema de comunicação, que pode ser facilmente manipulado sob a forma de alienação. Isso é possível, segundo o autor, quando o receptor se apresenta como agente passivo da interlocução, pois não há reflexão, o que permite a manipulação ideológica deste pelo transmissor. A problemática é evidenciada na passagem: “A imprensa internacional fornece informação total, instantânea e universal. Mas, ao mesmo tempo ela também gera ignorância total, instantânea e universal.” (CAMNITZER, 2006, p.268).

No sistema das artes esse tipo de dinâmica é usado para fixar as condições de mercado, ou seja, a produção artística segue uma série de regras criadas pelos países centrais e disseminadas como modelos universais, orientando o mercado mundial a cerca do quê e como deve ser feito. O resultado é a transformação da arte em produto cultural padronizado, inculcado no imaginário coletivo através da publicidade. O autor ironiza o estratagema dizendo que:

[...] Assim como o comércio, a arte está acima de jogos políticos mesquinhos "Ela ajuda na comunicação e entendimento das pessoas", "é um denominador comum para o entendimento". "O mundo é cada dia menor", e para baixo do tapete dessa frase varre-se a diferença, que cresce de momento a momento, entre as necessidades culturais dos países economicamente desenvolvidos e aquela dos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. As realizações da Metrópole têm automaticamente, validade internacional [...] (CAMNITZER, 2006, p.268).

Quando seu artigo foi publicado o artista já residia em Nova Iorque, centro das experimentações das novas linguagens artísticas. Absorvido pelas novas tendências que floresciam o artista identificou no conceitualismo novos horizontes para a produção latino-americana.  É possível identificar no artigo/obra de Camnitzer a noção de “intercâmbio dialético” defendida por Ramirez (2007), ou seja, o desenvolvimento de proposições artísticas que obedeçam a um “padrão de assimilação/conversão em grande medida orientado pela dinâmica e pelas contradições internas do contexto local” (RAMIREZ, 2007, p. 186). O artista demonstra perspicácia ao propor a assimilação do sistema de referências norte-americano, porém convertendo-o para o contexto histórico latino-americano como arte político/ideológica. O conceitualismo engajado e revolucionário defendido por Camnitzer configura-se como uma “contra-arte”, para usar termo de Frederico de Morais, ou um “antidiscurso” (conforme Ramirez), sobre as convenções da instituição arte.

Sua critica denunciava, ainda, a postura subserviente da classe artística “colonial” que acreditava produzir uma arte independente, mas na verdade não fazia mais do que seguir as regras impostas pela "metrópole". Camnitzer defende que tradicionalmente existe na arte uma tríade de elementos cuidadosamente equilibrados e calcados na manufatura de bens simbólicos: originalidade, redundância e banalidade [2]. Para ele, mesmo os artistas imbuídos de consciência política estavam enredados em um circulo vicioso que relegava sua produção às demandas da “metrópole”. Conforme o autor o sistema de banalidade ou sistema de referencia é o elemento que direciona politicamente o artista. Porém, a linguagem usada pelos artistas “coloniais” estava limitada a um sistema de referencias de apenas três possibilidades: estilo internacional, folclorismo ou linguagem de conteúdo politico-literário, ambos subordinados a regras preestabelecidas. A partir disso, o autor infere que, independentemente do sistema de referências adotado, o problema estava no fato de que esses artistas estavam ligados a um sistema maior, tradicional, o “sistema do objeto”, no qual a relação entre o objeto e seu consumo era o que determinava o funcionamento geral da arte. O objeto de arte era considerado um produto cultural, regido pelas normas do mercado de bens simbólicos, representado pelas instituições (museus e galerias).  Camnitzer diz que: "(...) as opções de arte tradicional preenchem socialmente a mesma função de outras instituições usadas pelas estruturas de poder para assegurar estabilidade. É por isso que ela leva a uma estética do equilíbrio." (CAMNITZER, 2006, p.273).

 

As estruturas de poder a que o autor se refere consistem, segundo a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu (1983, p. 90), em:

Nota 2

[…] um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital especifico que acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores. Esta estrutura, que está na origem das estratégias destinadas a transformá-la, também está sempre em jogo: as lutas, cujo espaço é o campo, têm por objeto o monopólio da violência legitima (autoridade especifica) que é característica do campo considerado, isto é, em definitivo, a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital especifico.

Nesse caso o agente que determinava as regras do jogo, isto é “o funcionamento do campo, a lógica de suas transformações, a estrutura das obras que produz e a lógica de sua sucessão” (BOURDIEU, 1983, p. 105) era o mercado de arte. Desta forma, Camnitzer apresenta duas possibilidades para resolver o impasse cultural gerado pelo mercado: uma moderada e outra bastante radical, mas ambas calcadas na participação ativa do público.

A solução moderada segue usando o sistema de referências disseminado pelas culturas dominantes, mas não para produzir produtos culturais e sim para informar o espectador sobre as possibilidades de uma cultura própria. Camnitzer compreende a transculturalização como um veículo de troca de informações que pode ser usado para suscitar reflexões. O contato com culturas economicamente desenvolvidas poderia originar na "colônia" uma consciência tal de sua condição periférica capaz de estimular culturalmente o espectador, levando-o a enxergar novas perspectivas. O autor denomina esse processo de “alfabetização perceptiva”, conceito que vai ao encontro do pensamento de Paulo Freire (1983), seu contemporâneo, cuja metodologia pedagógica preconiza que não basta alfabetizar é preciso ensinar a pensar.

A segunda possibilidade é usar a criatividade normalmente presente na arte para atingir uma identidade cultural própria, adotando elementos peculiares ao contexto histórico, social e político de cada região, ou seja, “afetar as estruturas culturais por meio de estruturas sociais e políticas” (CAMNITZER, 2006, p.272). Sem citar exemplos práticos o autor aponta semelhanças entre as atividades da guerrilha urbana e as atividades de um artista tradicional, ou seja, tanto o artista quanto a guerrilha tem em comum o objetivo de, ao mesmo tempo, comunicar uma mensagem e mudar as condições em que o público se encontra durante esse processo. Em ambas há um esforço na busca da originalidade, e, para tanto, utilizam um sistema de referencias já instituído, que enfatiza a mensagem até que esta alcance notoriedade (CAMNITZER, 2006, p.273).

Entretanto, o autor acredita que o grupo de guerrilha Tupamaros e outros grupos do mesmo tipo, assim como a arte estético-ideológica, produzida por alguns artistas latino-americanos, conseguem ir além. transcendendo efetivamente a função puramente estética e política do movimento, respectivamente, promovendo também uma mudança da estrutura social. Camnitizer acredita que as ações promovidas pelos Tupamaros se aproximam da arte, pois atingem altos níveis estéticos. Embora, provavelmente, o grupo fosse alheio aos sistemas de referencia tradicionalmente usados no campo artístico, possui conteúdo estético, uma vez que transmite uma mensagem estética capaz de ser compreendida como tal sem a influencia de contextos artísticos apontados pela instituição arte. Tais estratégias, segundo o autor, desestabilizam as estruturas do poder dominante (CAMNITZER, 2006, p.273-274).

O grupo de guerrilheiros Tupamaros tinha como objetivo chamar a atenção da população uruguaia para a pobreza e a exclusão social gerada pela corrupção. Para isso, recorriam a práticas, muitas vezes ilegais, cujo êxito dependia da participação da população. Camnitzer identifica nessas atividades uma potente manifestação estética em virtude de seu caráter comunicativo, cujo principal objetivo era a transformação social do Uruguai. O paralelo com a arte se dá pelo caráter subversivo/criativo de ambos. Os movimentos artísticos em destaque no período viam na linguagem sua forma suprema de comunicação, rejeitavam aquele que até ali fora a razão de ser da expressão artística, seu principal representante: o objeto de arte. Para Camnitzer as ações dos Tupamaros representavam a passagem da “legalidade elitista para a subversão”, assim como na arte a “passagem do objeto para a situação” (CAMNITZER, 2006, p.273). Ambos os formatos funcionam como uma rede em que não há um centro transmissor da informação, mas um sistema de conexões transmissoras das mensagens, por isso a participação do público é essencial. Em uma rede, as articulações permitem que um grande número de pessoas participe.

Em termos de comunicação, a rede é um sistema de ligações multipolar no qual pode ser conectado um número não definido de entradas, cada ponto da rede geral pode servir de partida para outras microrredes. [...] a importância não é concedida a um centro, a uma origem da informação em circulação, mas ao movimento que permite a conexão. Significa que a noção de “sujeito” comunicante apaga-se em favor de uma produção global de comunicações. É o que se designa também como interatividade (noção que sugere uma ação cuja finalidade é conectar dois “sujeitos” em um diálogo supostamente enriquecedor, geralmente bem vista como um aspecto favorável da comunicação, numa interpretação psicológica e socializante da rede) (CAUQUELIN, 2005, p. 59-60).

No entanto, o autor nos alerta para os riscos existentes. A “estética do desequilíbrio” pode levar à total rejeição ou à total participação. Em ambos os formatos apontados, o público, que antes era um agente passivo, é obrigado a participar. Camnitzer acredita que elas não deixam espaço para a alienação, uma vez que o público toma consciência de que será o principal beneficiário das mudanças reivindicadas.

Frederico Morais também refere à similaridade entre arte e guerrilha dizendo o seguinte:     

O artista, hoje, é uma espécie de guerrilheiro. A arte, uma forma de emboscada. Atuando imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada (pois tudo pode se transformar hoje em instrumento de guerra ou de arte), o artista cria um estado de permanente tensão, uma expectativa constante. Tudo pode se transformar em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano. Vítima constante da guerrilha artística, o espectador vê-se obrigado a aguçar e ativar seus sentidos […] sobretudo necessita tomar iniciativa. A tarefa do artista guerrilheiro é criar para o espectador(que pode ser qualquer um e não apenas aquele que frequenta exposições) situações nebulosas, incomuns, indefinidas, provocando nele, mais que o estranhamento ou a repulsa, o medo. E só diante do medo, quando todos os sentidos são mobilizados, há iniciativa, isto é, criação (MORAIS, 1970, p. 49).

A visão da arte como instrumento de transformação social que Camnitzer conserva ainda hoje, embora aparentemente utópica, parece ser antes um compromisso moral do que um compromisso artístico. Entretanto, Lippard e Chandler (2013) observam que uma arte ancorada no conceito em detrimento da materialidade e da visualidade da obra tende a gerar incômodo no espectador, uma vez que esse formato permite a ampliação das mídias, meios com os quais ele não está habituado. É possível que a permanência deste incômodo ou estranhamento do público diante da arte contemporânea pouco mais de meio século após sua conformação pode se dar em razão dele desconhecer ou não estar familiarizado com as transformações que marcaram a passagem da concepção moderna para a concepção contemporânea de arte. Nesse sentido, as proposições pedagógicas que sempre permearam a produção artística de Luiz Camnitzer permanecem válidas e se fazem necessárias, uma vez que seus conteúdos visam sanar um déficit do sistema educacional que, segundo Cauquelin (2005), não acompanhou as modificações geradas pela emergência da sociedade de comunicação e, por isso não consegue identificar as mudanças ocorridas no campo da arte. Para Coiro (2007) é urgente a reavaliação dos moldes educacionais para que abarquem novos métodos, mais flexíveis e próximos do “paradigma tecnológico” comum ao contexto contemporâneo. Somente assim o espectador poderá, conscientemente, efetivar sua tão desejada participação ativa.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

CAMNITZER, Luis. Arte contemporânea colonial [1970]. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 266-274.

______________. Propuesta para el aspecto pedagógico de la Bienal del Mercosur 2007. In: Projeto pedagógico – 6º Bienal do Mercosul. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2007.

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

COIRO, Márcia. A educação nos dias de hoje: algumas considerações e desafios. In: Projeto pedagógico – 6º Bienal do Mercosul. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2007.

FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

FREITAS, Artur. Arte de Guerrilha: Vanguarda e Conceitualismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.

 

KOSUTH, Joseph. Arte Depois da Filosofia [1969]. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de Artistas: anos 60/70, p. 210-234.

LIPPARD, Lucy R. e CHANDLER, John. A desmaterialização da arte. Arte e Ensaios – Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / Escola de Belas Artes, UFRJ, n. 25. Rio de Janeiro, mai. 2013, p. 150-165.

MORAIS, Frederico. Contra a arte afluente: o corpo é o motor da “obra”. Revista de Cultura Vozes, Vol. 1, n. 64. Rio de janeiro, jan./fev. 1970, p. 45-59. Disponível em: < http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/THEARCHIVE/FullRecord/tabid/88/doc/1110685/language/en-US/Default.aspx>. Acesso em: 10/03/2017.

PÉREZ-BARREIRO, Gabriel. Propuesta Curatorial para la 6º Bienal del Mercosur. In: Projeto pedagógico – 6º Bienal do Mercosul. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2007.

RAMIREZ, Mari Carmem. Táticas para viver da adversidade. O conceitualismo na América Latina. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - EBA/UFRJ, ano XIV, n. 15, Rio de Janeiro, 2007, p. 184-195. Disponível em:<http://www.baiadeguanabara.com.br/arte_ensaios_web/a_e_15/pdf/MariCarmenRamirez.pdf>. Acesso em: 20/02/2017.

 

NOTAS

[*] Bacharela em História da Arte pelo Instituto de Artes (UFRGS). (voltar para o texto)

[1] O artigo/proposição artística Arte Contemporânea Colonial foi apresentado pela primeira vez na conferência da Latin American Studies Association, em 1970 e publicado no mesmo ano no jornal uruguaio Marcha, periódico de oposição aos governos ditatoriais do período. Compreende, também, a publicação Six Years: The dematerialization of the art objec from 1966 to 1972, de Lucy R. Lippard, além de Escritos de Artista: anos 60/70, livro organizado por Glória Ferreira e Cecilia Cotrim, que reúne textos nos quais artistas de diferentes nacionalidades refletem sobre a natureza da produção artística. Poderíamos afirmar que o texto do artista se configura ao mesmo tempo como proposição artística e critica de arte. (voltar para o texto na nota 1)

[2] “A originalidade é a contribuição do trabalho de arte. A redundância, tecnicamente um desperdício de informação repetitiva, assegura a recepção inteligente da mensagem por parte do público. A banalidade é o sistema de referencias, ou a coleção de elementos conhecidos de que a originalidade necessita, como um veículo, a fim de não morrer no hermetismo e incomunicabilidade.” (p.269-270). (voltar para o texto na nota 2)

Notas

COMO CITAR ESSE TEXTO

 

ABREU, Izis. Estética do desequilíbrio: a desmaterialização da arte em Luiz Camnitzer. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2017. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/esteticadodesequilibrio> . Acesso em: [dia mês. ano].

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