top of page

Uma narrativa do corpo: Hudinilson Jr.

Arte e Xerox

​

Ao longo de sua carreira artística, Hudinilson Junior (1957-2013)[1] foi propositor de diversas ações e experimentou múltiplas expressões artísticas, desde pintura à pichação e grafite. Mas para este texto, discutirei apenas um fragmento da sua trajetória que se refere às obras de arte xerox produzidas, em grande parte, durante a década de 1980. Nesse momento, a máquina Xerox era considerada uma das “novas tecnologias” no Brasil, ao mesmo tempo em que, na perspectiva da arte, era vista como um meio pobre de produção. Baseando-me, em parte, no texto do crítico brasileiro Frederico Morais[2] Contra a arte afluente: O corpo é o motor da obra, de 1970, contraponho a arte xerox à arte tecnológica, que “repõe o tabu dos materiais nobres, que são agora o acrílico, o alumínio, o PVC e, também, o preconceito da obra bem feita, higiênica, limpa, resistente e durável. Sobretudo a 'minimal art' e o 'hard-edge'” (MORAIS, 1970, p. 57).

​

A arte pobre – termo aqui generalizado – vinha sendo desenvolvida no Brasil desde o início dos anos 1960, com Lygia Clark, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Artur Barrio, Antonio Manuel, Lygia Pape, entre outros que trabalhavam suas distintas poéticas e proposições a partir de tecidos baratos, papelão de embalagens, terra, jornais, detritos, materiais orgânicos e outros descartáveis do cotidiano. Nas palavras de Frederico Morais (1970, p. 57):

Nota 1
Nota 2

A arte pobre e conceitual aproxima-se, assim, da “estética do lixo”, da “junk culture”, de Willian Burroughs, da arte de detritos (merz) de Kurt Scwitters, que empilhou entulhos fazendo sua famosa “merzbau” e usou tudo que achava na rua para realizar seus quadros [...] e poemas [...], da arte precária dos neo-Dadas, como Burri, dos happenings realizados por Cage, Kaprow, Warhol, Lebel nas ruas, oficinas, cemitérios de automóveis, borracheiros. Nada de materiais nobres e belos, nada além do acontecimento, do conceito. 

Apesar de o meio ser uma nova tecnologia, o produto da arte xerox é também pobre, sendo aplicado, na maioria das vezes, a cartões postais e colagens [Figs. 1 e 2], cujo material base é sempre o papel. Além disso, um dos principais fins da produção em xerox era justamente a circulação de materiais pelo correio, se relacionando diretamente, portanto, com a arte postal, de maneira que havia um desprendimento do objeto, que não era fetichizado nem valorizado mercadologicamente [3].

Nota 3

 [Fig. 1] Eros, 1980. Postal. MAC-USP

[Fig. 2] Sem título, 1980. Colagem. MAC-USP.

O universo de Narciso

​

Tendo livre acesso a uma máquina Xerox no escritório de um amigo, Hudinilson Jr. dá início na década de 1980 a série de trabalhos chamada Exercícios de Me Ver, criando uma poética que se encontra no próprio corpo, de maneira autoerótica, alcançando um viés discursivo denominado homoerótico. O artista adota o texto O Tratado de Narciso (1983), de André Gide, como eixo de seu projeto estético (GARCIA, 2012) e produz fotocópias de toda e qualquer parte do seu corpo [Fig.3].

[Fig. 3] Registro fotográfico da série Exercícios de Me Ver.  

Assim como Narciso, que reconhecia o seu semblante na água, mas que logo se perdia pela proximidade ou pela correnteza inquieta que movia no reflexo a paisagem ao redor, num processo de se auto conhecer e se perder, Hudinilson cria imagens que se confundem em anatomia e paisagem [Fig.4].

[Fig. 4] Exercícios de Me Ver II, 1982. Fotocópia sobre papel. 

Sobre o uso do corpo, Frederico Morais assinala os experimentos prévios de Hélio Oiticica e Lygia Clark, onde

[...] o que se vê é a nostalgia do corpo, um retorno aos ritmos vitais do homem, a uma arte muscular. [...] Arte como “cosa corporale”. Nos seus parangolés coletivos Oiticica buscou reviver o ritmo primitivo do tam-tam, fundindo cores, sons, dança e música num único ritual. [...] As propostas igualmente sensoriais de Lygia Clark despertaram a atenção dos meios científicos, sobretudo entre os jovens psicólogos. (MORAIS, 1970, p. 58)

Apesar da grande diferença estética explorada entre esses artistas, o mote da obra é muitas vezes o corpo. Ou, nas palavras de Morais, “o corpo é o motor da obra”, ela depende da energia do corpo para existir ou para “funcionar”. No caso de Hudinilson Jr., ao mesmo tempo em que o corpo abastece e cria a obra, a obra leva o observador – tanto o observador de segunda ordem: público, como o de primeira ordem: o próprio artista – a descobrir e conhecer aquele mesmo corpo, “o que é de suma importância em uma época em que a máquina e a tecnologia alienam o homem não só de seus sentidos, mas de seu próprio corpo. Uma das características do meio tecnológico é a ausência. O distanciamento.” (MORAIS, 1970, p. 58)

​

Contrapondo o pensamento do crítico, Hudinilson Jr. usou dessa tecnologia supostamente alienadora para explorar, conhecer e criar outras perspectivas que não só uma descrição ou denotação de sua forma física. A obra final, inclusive, pode apresentar aspectos de deformação curiosos. O artista revela, por meio de uma sensualidade descritiva em alguns trabalhos [Fig. 2, 6, 8], um aprofundamento da subjetividade e, às vezes, na ampliação de imagens e randomização de “pedaços” do corpo, a dissolução de qualquer subjetividade em favor da criação de paisagens ou desconfortos [Fig. 4, 5, 7].

[Fig. 5]  Sem título, década de 1980 Fotocópia sobre papel.

[Fig. 6]  Sem título, década de 1980 Fotocópia sobre papel.

Em outro ponto, Frederico Morais observa o trabalho de Hudinilson Jr. como visceral: “[...] Se a roupa é uma segunda pele, a extensão do corpo (Mc-Luhan), é preciso arrancar a pele, buscar o sangue, as vísceras. Arte corporal, arte muscular.” (MORAIS, 1970, p. 58-59). Hudinilson Jr. arranca a sua pele (roupa), a extensão de seu corpo, e mostra o músculo, subvertendo a tranquilidade do circuito das artes visuais brasileiro na década de 1980, no retorno à “ordem” [Fig. 5]. Seu processo de reconstrução do corpo, sua impetuosidade visual, escandaliza os conservadores que crescem em número, após duas décadas de luta pela liberação sexual.

​

Lançando mão desses recursos gráficos simples para a produção de suas obras, fotocópias obsessivamente ampliadas a partir de formatos A3 e A4 incluíam a presença de estruturas quadriculadas que eram impressas no papel pautado ou então milimetricamente traçadas por ele mesmo com desenho, e até confeccionadas simplesmente utilizando técnicas de recorte e cola. A presença recorrente desse grid sobressai em autorretratos e imagens de homens nus que configuram seu discurso homoerótico. No nosso permanente estado de observadores de segunda ordem, pode-se apenas imaginar, em uma das hipóteses, que essas estruturas apontam e fazem o papel dos impedimentos de natureza política, social, moral e, por que não física, que o desejo homoerótico e o pensamento artístico queer enfrentaram durante a ditadura civil-militar brasileira e, sobretudo, da iminente progressão da AIDS [Figs. 6, 7 e 8].

[Fig. 7] Sem título, sem data. Fotocópia sobre papel. MAC-USP

[Fig. 8] Sem título, 1978. Fotocópia sobre papel. MAC-USP

A pesquisa estética de Hudinilson Jr. propõe, sem dúvida, inúmeras leituras a partir de suas colagens e arte xerox. A exploração das potencialidades do corpo erótico e a metáfora de Narciso enriquecem o repertório do artista, que estimula o observador a perceber mais de perto a sua linguagem visceral. Nas palavras de Jean-Claude Bernadet (1983, p. 2):

Aproximar-se mais, bem de perto, ver o detalhe. Mais nos detemos no detalhe que nosso olho isola ou que a ampliação oferece, mais o corpo escapa, esvaindo-se em paisagens abstratas, labirintos de pêlos, arborescências geografias imaginárias, erosão na rocha calcária, curvas de uma sensualidade latente, mas não identificamos se de coxa, do braço ou da axila. Mais nos aproximamos desse corpo exibido em espetáculo, mais ele se distancia de nós. Aproximação que é só do olhar espectador e que proíbe o tato. Não é o corpo detalhadamente conhecido pelo olho próximo e amoroso, detalhadamente apalpado pelo dedo ou pela língua. Mais pensamos entrar na intimidade desse corpo que ilusoriamente se oferece, mais nos defrontamos com um sistema. 

Obras carregadas de contribuições emotivas e imaginativas, com sugestões deliberadas de conteúdo corpóreo, surpreendem ao olhar. Apesar de a arte xerox não ser mais tão explorada agora, a produção de Hudinilson Jr. continua fortemente pertinente e atual, uma vez que as questões de gênero e erotização, e ainda o repertório referente ao universo gay, estão sendo desenvolvidas largamente, principalmente pelos jovens artistas, num momento em que, assustadoramente, mais do que nunca o assunto é tratado com preconceito e ignorância.

REFERÊNCIAS:

​

BERNADET, Jean-Claude. Palavras para um corpo xerocado. In: xerox action (catálogo da exposição). São Paulo: MAC-USP, 1983.

 

GARCIA, Wilton. Arte homoerótica no Brasil: estudos contemporâneos. Gênero, Niterói, v.12, n.2, p. 131-163, 1. sem. 2012. Disponível em: <http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/download/419/312>. Acesso em: 18 mar. 2018.

​

GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo). Ed. Flumen, 1983. Tradução disponível em: <http://culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/gide.html#.VZC38vlViko>. Acesso em: 18 mar. 2018.

​

MORAIS, Frederico. Contra a arte afluente: o corpo é o motor da obra. Revista de Cultura Vozes, Rio de Janeiro, Vol.1, n°64. jan-fev.1970. Disponível em: <https://icaadocs.mfah.org/icaadocs/THEARCHIVE/FullRecord/tabid/88/doc/1110685/language/en-US/Default.aspx>. Acesso em: 18 mar. 2018.

NOTAS:

​

[*] Bacharela em História da Arte pelo Instituto de Artes da UFRGS. Co-fundadora e editora do periódico editora do Ícone: Revista Brasileira de História da Arte. Cursa Especialização em Filosofia pela UNISINOS. (voltar ao texto na nota de autor)

​

[1] Hudinilson Urbano Júnior (São Paulo 1957-2013) cursou artes plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP, entre 1975 e 1977. Experimenta múltiplas expressões artísticas como desenho, pintura, arte postal, pixo/grafite, xerografia (arte xerox), performance e intervenções urbanas, nas quais o corpo humano masculino é um tema recorrente. Em 1979, funda o grupo 3nós3, com os artistas Rafael França (1957 - 1991) e Mario Ramiro (1957), que até 1982, realiza intervenções artísticas na paisagem urbana de São Paulo. A partir de 1982, inicia a série Exercícios de Me Ver, que consiste na reprodução xerográfica de partes do próprio corpo. Seus trabalhos em grafite, utilizando estêncil, são elaborados desde meados da década de 1980. No mesmo período, conhece Alex Vallauri (1949 - 1987), de quem recebe orientações e o acompanha em alguns trabalhos. Em 1984 participa da 1ª Bienal de Havana e da exposição Arte Xerox Brasil, na Pinacoteca do Estado de São Paulo - Pesp, da qual é o curador. Expõe na 18ª Bienal Internacional de São Paulo em 1985 e na 3ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, em 2002, entre muitas outras exposições coletivas e individuais. (voltar ao texto na nota 1)

​

[2] Frederico Morais (Belo Horizonte 1936) exerce a profissão de crítico de arte desde 1956. A partir de 1966, escreveu para coluna de artes plásticas do Diário de Notícias (1966-1973) e O Globo (1975-1987). Ele também esteve diretamente envolvido com os principais eventos de vanguarda do país, da Nova Objetividade ao Salão da Bússola, e organizou algumas das mais importantes ações coletivas da arte brasileira, como Arte no Aterro, os Domingos da Criação e Do Corpo à Terra. Entre os principais livros que publicou estão: Artes plásticas: a crise da hora atual (1975), Artes plásticas na América Latina: do transe ao transitório (1979), Chorei em Bruges (1983), O Brasil na visão dos artistas – A natureza e as artes plásticas (2001) e Marilia Kranz (2008). É co-autor de outros 29 livros e autor de 35 catálogos-livros. Realizou a curadoria de 67 exposições e eventos de arte no Brasil e no exterior. (voltar ao texto na nota 2)

​

[3] Os trabalhos de arte postal, arquivados ao longo dos anos por instituições culturais ou em coleções de artistas, ainda habitam um limbo entre o acervo artístico e o departamento de documentação de algumas dessas instituições, uma vez que não se tem o consenso sobre seu status de arte, principalmente em ambientes que enxergam "alta" e "baixa arte". (voltar ao texto na nota 3)

Notas

COMO CITAR ESSE TEXTO

​

DOMBROWSKI, Liana Schedler. Uma narrativa do corpo: Hudinilson Jr. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2018. Disponível em: <https://www.hacer.com.br/hudinilson-jr>. Acesso em: [dia mês. ano].

bottom of page