top of page

A Leiteira, de Johannes Vermeer

Johannes Vermeer (1632-1675)

A Leiteira, c. 1658-1660
Óleo sobre tela, 45,5 x 41 cm
Amsterdam, Rijksmuseum

A Leiteira é uma pintura feita em óleo sobre tela pelo pintor holandês Johannes Vermeer (1632-1675), por volta dos anos de 1658 e 1660. A obra atualmente se encontra no Rijksmuseum, na cidade de Amsterdam, na Holanda. Passou a integrar o acervo do Rijksmuseum em 1908, após um controverso processo de compra. A obra integrava um pacote de 39 pinturas que pertenciam ao colecionador holandês Jonkheer P. H. Six van Vromade, falecido em 1905. O pacote de pinturas seria adquirido pela Sociedade Rembrandt, uma instituição privada, que, no entanto, não conseguiu levantar o montante necessário. O estado holandês completou a quantia que faltava, mas teve sua participação na compra questionada por alguns historiadores de arte da época, que julgavam que algumas obras do pacote, entre as quais A Leiteira, não eram dignas de integrar o acervo do Rijksmuseum. A controvérsia ganhou os jornais e foi parar no parlamento holandês, onde se considerou que as pinturas eram parte da herança cultural nacional e que deveriam ser preservadas. A compra foi efetuada e a obra A Leiteira se constitui hoje em uma das principais atrações do Rijksmuseum.

 

A pintura mostra uma mulher quase de corpo inteiro no interior do que parece ser a cozinha de uma casa de classe média holandesa do século XVII. Ela segura um jarro com as duas mãos e está servindo leite deste jarro em um recipiente circular, com duas pequenas alças laterais. O recipiente está sobre uma mesa, na qual se percebe a existência de uma cesta contendo um pão inteiro. Sobre a mesa, fora da cesta, existem ainda vários outros pedaços menores de pão, bem como um tecido de cor azulada, que pode ser uma toalha, meio amassado e pendendo para fora da mesa. Atrás da cesta, percebe-se a existência de outro jarro, mais escuro e com uma tampa. A mulher está virada em posição de meio perfil para o lado esquerdo de um espectador de frente para o quadro. É uma mulher robusta e está olhando para baixo, parecendo muito concentrada na tarefa que executa. Veste um traje típico de uma criada holandesa do século XVII, incluindo uma touca branca na cabeça. Seu vestido é amarelo, possuindo uma coloração esverdeada e azulada nas mangas, que estão arregaçadas e dobradas. Veste também um avental azulado. Na parede junto à mesa, que se situa no lado esquerdo da pintura, aparece parte de uma janela, pela qual entra a luz que ilumina toda a composição. Ao lado desta janela, pendurada em um prego fixado na mesma parede, está uma cesta e, acima dela, algo que parece um pequeno quadro. Meio encoberto pela cesta e pendurado na parede adjacente, há um objeto metálico de cor dourada, que pode ser uma espécie de balde de latão. O restante desta parede, situada atrás da mulher está praticamente vazio, possuindo uma coloração branca, que varia conforme a luz que incide, bem como pequenos buracos e fissuras. Percebe-se também um prego cravado na parte superior da parede, que possui, nesta região, uma pequena diferença de tom que pode sugerir que havia um quadro pendurado e que foi removido. Na parte direita inferior, há uma pequena caixa no chão, de forma quadrada, com uma das laterais abertas e com um objeto dentro. Essa caixa pode ser um tipo de aquecedor de chão, contendo um recipiente com brasas.

 

A obra se enquadraria na chamada pintura de gênero holandesa, mais especificamente nas cenas domésticas e de interior. Na pintura de Vermeer, entretanto, este tema recebe um tratamento intimista e peculiar. Há uma quase ausência de narrativa, sendo sua pintura considerada por alguns autores, como o historiador da arte Ernst Gombrich (1999, p. 430), como “naturezas-mortas incluindo seres humanos”. De fato, a ação é quase estática, fazendo com que toda a cena pareça estar inserida no universo atemporal da natureza-morta (DAVIES, 2010, p. 745). No caso de A Leiteira, a composição dos pães e da toalha sobre a mesa, combinadas com os objetos pendurados nas paredes, remetem de fato ao gênero da natureza-morta. No entanto, a presença humana na cena descaracterizaria este enquadramento da obra. Da mesma forma, a pintura também não se propõe a ser um retrato. Sua associação como uma cena doméstica parece ser a mais aproximada em termos temáticos, sendo que, mesmo assim, sua ausência de movimento e sua narrativa apenas esboçada mostram uma abordagem diferenciada deste gênero pictórico.

 

Outra abordagem temática que se pode fazer desta obra diz respeito à questão da crítica do vício e exaltação da virtude, também característica da pintura de gênero holandesa. Segundo o autor Norbert Schneider (2010, p. 61), em muitas obras holandesas, as criadas eram retratadas como preguiçosas ou lascivas. Um exemplo mais direto desta abordagem é a tela Criada Preguiçosa (figura abaixo à esquerda), do pintor Nicolas Maes (1634-1693). Nesta obra, a criada aparece dormindo em uma cadeira, deixando uma pilha de louça no chão e um gato se servir de uma galinha depenada. Em outra obra, Cozinheira Picando Cebolas (figura abaixo à direita), do pintor Gerrit Dou (1613-1675), a lascívia se identifica, segundo Schneider (2010, p. 61), “pela inclusão de cebolas (um afrodisíaco) e da galinha pendente (tradicionalmente, um símbolo de desejo carnal)”.

Nicolas Maes (1634-1693)

A Criada Preguiçosa, 1655
Óleo sobre painel, 70 x 53 cm

Londres, National Gallery

Gerrit Dou (1613-1675)

Cozinheira picando cebolas, c. 1646
Óleo sobre painel, 18 x 14,8 cm
Londres, Royal Collection

A tela de Vermeer segue uma lógica completamente diferente destas duas obras apresentadas. Não despontam elementos lascivos ou que, de alguma forma, deponham contra as virtudes da leiteira representada. Ela é mostrada colocando cuidadosamente o leite em uma vasilha, concentrada no que faz, com o olhar baixo e uma expressão serena. As paredes sem ornamentos enfatizam sua simplicidade. Segundo Schneider (2010, p. 61), “ela é a personificação da `serva espiritual´, repetidamente exaltada nos tratados religiosos”. A própria presença do leite e do pão atesta este caráter religioso, pois são alimentos considerados espirituais e citados na Bíblia. Desta forma, Vermeer confere à sua leiteira uma dignidade superior, retirando-lhe qualquer referência a vícios e transformando-a em um modelo de virtudes.

Johannes Vermeer (1632-1675)

A Arte de Pintar (detalhe), 1665-67 
Óleo sobre tela, 120 x 100 cm

Viena, Kunsthistorisches Museum

Uma aproximação maior de um segmento da pintura (figura ao lado) revela que o pintor utilizava uma espécie de técnica pontilhista, parecendo fazer pequenos toques com o pincel a fim de criar este efeito de reflexo da luminosidade em tecidos e superfícies, atingindo muitas nuances e variações de cor. O resultado é uma pintura muito realista e, ao mesmo tempo, poética. “O domínio que Vermeer exibe das qualidades expressivas da luz eleva ao nível da poesia a sua preocupação com o realismo das representações. O pintor preocupou-se, acima de tudo, com as possibilidades visuais e simbólicas da luz” (DAVIES, 2010, p. 746). 

Em termos formais, a obra de Vermeer também possui características especiais. O pintor soube, como poucos, trabalhar de forma inovadora e peculiar a incidência da luz nos objetos, criando nuances de cores e texturas que tornam sua obra única. Os objetos e pessoas que compõem suas cenas são mostrados pela incidência da luz, se revelando aos olhos do espectador nesses termos, levando-o a intuir sua identidade. Referindo-se a outra obra de Vermeer, A Arte de Pintar (figura ao lado), a historiadora da arte Svetlana Alpers (1999, p. 102) diz: “nossa experiência é vertiginosa por causa do modo pelo qual a mão é pintada com tom e luz, sem declarar sua identidade como mão”. Em A Leiteira, encontra-se também este tipo de relação entre a luz e a cena como um todo. Tanto a moça servindo leite, quanto todos os objetos presentes são revelados pela luz que incide da janela à esquerda da pintura, existindo mais função desta luminosidade do que se afirmando como componentes com uma identidade própria. É a luz que revela as cores e texturas dos objetos e que lhes dá forma e volume. Vermeer parece ir compondo metodicamente os objetos, revelando-os a partir da luminosidade que incide da janela, com uma técnica minuciosa.

Johannes Vermeer (1632-1675)

A Leiteira (detalhe), c. 1658-1660
Óleo sobre tela, 45,5 x 41 cm
Amsterdam, Rijksmuseum

Em A Leiteira, este caráter poético é atingido com espetacular maestria, criando uma composição onde a luz que forma o conjunto da cena dialoga com muita intimidade com o tema representado. A obra, ao mesmo tempo em que possui um grande realismo, parece também possuir um tom mágico e etéreo, talvez associado ao simbolismo dos alimentos representados, o pão e o leite, bem como à figura da criada que, em atitude repleta de dignidade e dedicação, se prepara para servir este alimento. Assim como os objetos na pintura de Vermeer vão se formando pela incidência da luz, tendo sua identidade muitas vezes intuída pelo espectador, também o conjunto da cena, com apenas um esboço de narrativa, parece convidar o espectador a criar um contexto maior àquela imagem, associando-lhe sentimentos e ambientação. A suavidade que emana da obra parece comunicar um estado de espírito, que surge da associação de uma cena corriqueira, mas cheia de significados, com a luz que a envolve, transformando-a em um momento especial e único. Para Gombrich (1999, p. 433), as pinturas de Vermeer “nos fazem ver a serena beleza de uma cena simples com novos olhos e nos dão uma ideia do que o artista sentiu ao observar a luz jorrando através da janela [...]”. Este novo olhar sobre o simples parece ser um dos principias legados da pintura de Vermeer. O artista nos mostra que os momentos mais corriqueiros, as pessoas mais simples, as paredes mais despidas podem estar revestidos da mais profunda beleza, se houver o olhar que possa ver.


REFERÊNCIAS 

​

ALPERS, Svetlana. “Ut pictura, ita visio”: o modelo do olho em Kepler e a natureza do ato de pintar no norte. In: __. A arte de descrever: a arte holandesa n século XVII. São Paulo: USP, 1999. p. 83-157.

​

GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1999.

​

DAVIES, Penelope J. E. et al. A nova história da arte de Janson. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

​

KRÉN, Emil; MARX, Daniel. Web Gallery of Art. Disponível em: <http://www.wga.hu>. Acesso em: 14 out. 2017.

​

SCHNEIDER, Norbert. Vermeer: 1632-1675: emoções veladas. Hong Kong: Taschen, 2010.

​

RIJKSMUSEUM. [Site oficial]. Amsterdam: Rijksmuseum, 2010. Disponível em: <http://www.rijksmuseum.nl/>. Acesso em: 14 out. 2017. 

COMO CITAR ESSE TEXTO 

​

SILVA, Marcelo de Souza. A leiteira, de Johannes Vermeer. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2017. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/leiteira>. Acesso em: [dia mês. ano].

bottom of page