top of page

A conversão de São Paulo

A conversão de São Paulo é uma passagem bíblica do Novo Testamento, objeto de recorrentes representações na história da arte ocidental, tendo sido trabalhada por artistas amplamente conhecidos, como Michelangelo e Caravaggio, entre outros. Muitas vezes é apresentada com o título A conversão de Saulo, tratando-se do mesmo episódio.

 

Paulo de Tarso, nascido Saulo, foi um dos principais pregadores do Cristianismo em sua fase inicial. Foi contemporâneo de Jesus Cristo, embora nunca o tenha encontrado pessoalmente durante sua vida terrena. Deixou sua obra escrita na forma de epístolas (ou cartas), sendo que treze delas atualmente integram o Novo Testamento. Paulo de Tarso é considerado um dos principais expoentes da filosofia cristã, ao lado de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.

ANTES DA CONVERSÃO

 

Saulo nasceu em Tarso, na região da Cilícia, que hoje é parte integrante da Turquia. Era de origem judaica, mas detinha cidadania romana, o que lhe conferia uma série de privilégios, uma vez que toda aquela região era, na época, dominada pelo Império Romano. Saulo foi educado em Jerusalém na tradição judaica, tendo Gamaliel como mestre, respeitado doutor na Lei de Moisés. No livro de Atos dos Apóstolos, no Novo Testamento (de autoria do evangelista Lucas), Paulo se apresenta da seguinte forma a uma multidão em Jerusalém:

 

Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade e aqui fui instruído aos pés de Gamaliel, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus, assim como todos vós o sois no dia de hoje (Atos 22:3).

 

Em sua juventude, Saulo se tornou um defensor ferrenho da pureza da lei judaica e, por isso, um implacável perseguidor dos cristãos. Esteve presente na morte de Estevão, primeiro mártir cristão, executado a pedradas:

 

Eles, então, soltaram um grande grito e taparam os ouvidos; depois, à uma, atiraram-se a ele e, arrastando-o para fora da cidade, começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram as suas capas aos pés dum jovem chamado Saulo (Atos 7: 57-58).

 

A partir desse episódio, Saulo tornou-se um dos principais líderes na perseguição dos cristãos em Jerusalém, estando diretamente envolvido em várias prisões e condenações dos seguidores de Cristo. Após alguns meses, pretendia estender as suas perseguições a Damasco, mas um acontecimento fantástico ocorreria no caminho para aquela cidade, mudando radicalmente a vida de Saulo e a própria história do Cristianismo.

A CONVERSÃO

 

A conversão de Paulo encontra-se descrita em três momentos no livro de Atos dos Apóstolos, no Novo Testamento. A primeira delas está no capítulo 9:

 

¹ Saulo, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote

² e lhe pediu cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém.

³ Seguindo ele estrada fora, ao aproximar-se de Damasco, subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor,

⁴ e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues?

⁵ Ele perguntou: Quem és tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus, a quem tu persegues;

⁶ mas levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer.

⁷ Os seus companheiros de viagem pararam emudecidos, ouvindo a voz, não vendo, contudo, ninguém.

⁸ Então, se levantou Saulo da terra e, abrindo os olhos, nada podia ver. E, guiando-o pela mão, levaram-no para Damasco.

⁹ Esteve três dias sem ver, durante os quais nada comeu, nem bebeu.

(Atos 9:1-9, grifos nossos).

No versículo 2 da passagem acima há uma menção ao termo Caminho com a letra inicial maiúscula: “a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém”. Isso se deve ao fato de que os cristãos, naquele momento, eram conhecidos como os do Caminho, nome então dado ao movimento que depois passou ser conhecido como Cristianismo.

 

A segunda descrição aparece no capítulo 22, em passagem na qual Paulo se dirige aos judeus em Jerusalém:

¹ Irmãos e pais, ouvi, agora, a minha defesa perante vós.

² Quando ouviram que lhes falava em língua hebraica, guardaram ainda maior silêncio. E continuou:

³ Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade e aqui fui instruído aos pés de Gamaliel, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus, assim como todos vós o sois no dia de hoje.

⁴ Persegui este Caminho até à morte, prendendo e metendo em cárceres homens e mulheres,

⁵ de que são testemunhas o sumo sacerdote e todos os anciãos. Destes, recebi cartas para os irmãos; e ia para Damasco, no propósito de trazer manietados para Jerusalém os que também lá estivessem, para serem punidos.

⁶ Ora, aconteceu que, indo de caminho e já perto de Damasco, quase ao meio-dia, repentinamente, grande luz do céu brilhou ao redor de mim.

⁷ Então, caí por terra, ouvindo uma voz que me dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues?

⁸ Perguntei: quem és tu, Senhor? Ao que me respondeu: Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem tu persegues.

⁹ Os que estavam comigo viram a luz, sem, contudo, perceberem o sentido da voz de quem falava comigo.

¹⁰ Então, perguntei: que farei, Senhor? E o Senhor me disse: Levanta-te, entra em Damasco, pois ali te dirão acerca de tudo o que te é ordenado fazer.

¹¹ Tendo ficado cego por causa do fulgor daquela luz, guiado pela mão dos que estavam comigo, cheguei a Damasco.

(Atos 22:1-11, grifos nossos).
 

A terceira descrição está no capítulo 26, no momento em que Paulo apresenta sua defesa perante o Rei Agripa e outras autoridades judaicas:

 

¹ A seguir, Agripa, dirigindo-se a Paulo, disse: É permitido que uses da palavra em tua defesa. Então, Paulo, estendendo a mão, passou a defender-se nestes termos:

² Tenho-me por feliz, ó rei Agripa, pelo privilégio de, hoje, na tua presença, poder produzir a minha defesa de todas as acusações feitas contra mim pelos judeus;

³ mormente porque és versado em todos os costumes e questões que há entre os judeus; por isso, eu te peço que me ouças com paciência.

⁴ Quanto à minha vida, desde a mocidade, como decorreu desde o princípio entre o meu povo e em Jerusalém, todos os judeus a conhecem;

⁵ pois, na verdade, eu era conhecido deles desde o princípio, se assim o quiserem testemunhar, porque vivi fariseu conforme a seita mais severa da nossa religião.

⁶ E, agora, estou sendo julgado por causa da esperança da promessa que por Deus foi feita a nossos pais,

⁷ a qual as nossas doze tribos, servindo a Deus fervorosamente de noite e de dia, almejam alcançar; é no tocante a esta esperança, ó rei, que eu sou acusado pelos judeus.

⁸ Por que se julga incrível entre vós que Deus ressuscite os mortos?

⁹ Na verdade, a mim me parecia que muitas coisas devia eu praticar contra o nome de Jesus, o Nazareno;

¹⁰ e assim procedi em Jerusalém. Havendo eu recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos nas prisões; e contra estes dava o meu voto, quando os matavam.

¹¹ Muitas vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E, demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas os perseguia.

¹² Com estes intuitos, parti para Damasco, levando autorização dos principais sacerdotes e por eles comissionado.

¹³ Ao meio-dia, ó rei, indo eu caminho fora, vi uma luz no céu, mais resplandecente que o sol, que brilhou ao redor de mim e dos que iam comigo.

¹⁴ E, caindo todos nós por terra, ouvi uma voz que me falava em língua hebraica: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões.

¹⁵ Então, eu perguntei: Quem és tu, Senhor? Ao que o Senhor respondeu: Eu sou Jesus, a quem tu persegues.

¹⁶ Mas levanta-te e firma-te sobre teus pés, porque por isto te apareci, para te constituir ministro e testemunha, tanto das coisas em que me viste como daquelas pelas quais te aparecerei ainda,

¹⁷ livrando-te do povo e dos gentios, para os quais eu te envio,

¹⁸ para lhes abrires os olhos e os converteres das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim.

¹⁹ Pelo que, ó rei Agripa, não fui desobediente à visão celestial,

²⁰ mas anunciei primeiramente aos de Damasco e em Jerusalém, por toda a região da Judeia, e aos gentios, que se arrependessem e se convertessem a Deus, praticando obras dignas de arrependimento.

²¹ Por causa disto, alguns judeus me prenderam, estando eu no templo, e tentaram matar-me.

²² Mas, alcançando socorro de Deus, permaneço até ao dia de hoje, dando testemunho, tanto a pequenos como a grandes, nada dizendo, senão o que os profetas e Moisés disseram haver de acontecer,

²³ isto é, que o Cristo devia padecer e, sendo o primeiro da ressurreição dos mortos, anunciaria a luz ao povo e aos gentios.

(Atos 26:1-23, grifos nossos).

As três passagens apresentam elementos em comum e algumas pequenas diferenças, principalmente no que diz respeito ao diálogo ocorrido entre Jesus e Paulo. As descrições do episódio, que futuramente seriam utilizadas pelos artistas em suas representações visuais, trazem vários elementos que caracterizam a cena e não apresentam maiores contradições entre si. Entre estes elementos, que seriam fundamentais para identificação visual da narrativa, estão: o resplendor de luz (que viria a cegar Paulo), a queda do apóstolo do cavalo em que estava montado, a presença de Jesus dirigindo-se a Paulo, a reação atônita de Paulo e o espanto dos outros membros da comitiva que ouviam uma voz, mas não viam nada.

Na obra Legenda Áurea, escrita no século XIII e amplamente difundida na época do Renascimento e Barroco, a conversão de Paulo é descrita e analisada da seguinte forma:

A maneira como se deu a conversão também foi milagrosa, através de uma luz, uma luz súbita, imensa e celestial. Súbita, pois “ele foi de repente envolto por uma luz que vinha do céu”. Paulo tinha três vícios. O primeiro era a audácia, como atestam as palavras: “Ele foi encontrar o grão-sacerdote etc.”, sobre as quais diz a Glosa: “Ninguém o tinha instado a isso, ele foi por si mesmo, seu zelo é que o moveu”. O segundo era o orgulho, provado pelas palavras: “Ele fazia ameaças, prometia carnificina”. O terceiro era a interpretação material que dava à Lei, o que faz a Glosa dizer: “Sou Jesus, sou Deus do Céu, aquele que como judeu você acredita estar morto”. Portanto, a luz divina foi súbita para aterrorizar o audacioso; foi imensa para lançar esse altivo, esse soberbo, nas profundezas da humildade; foi celestial para tornar celeste aquela inteligência carnal. Ou, pode-se dizer, a conversão foi milagrosa pelos três meios utilizados: a voz que chamou, a luz que brilhou e a força que alterou.

O trecho acima dá especial destaque à luz envolvida no episódio, ressaltando suas qualidades e características. Nas representações visuais da cena, é possível perceber a preocupação e o desafio para os artistas de imaginar e reproduzir uma luz com essas qualidades, estabelecendo assim o caráter fantástico e divino do episódio.

Entre os elementos que variam nas três descrições bíblicas pode-se destacar principalmente a sequência do diálogo entre Jesus e Paulo. Na primeira sequência, de Atos 9:1-9, é apresentado o diálogo mais curto. Essa sequência passa a impressão de um Jesus mais severo que, logo ao se revelar, já ordena a Paulo que se levante e aguarde instruções do que deverá fazer. Na segunda sequência, de Atos 22:1-11, após Jesus se identificar, Paulo pergunta-lhe o que deve fazer e, somente então, Jesus lhe orienta. Essa sequência passa uma impressão psicológica diferente, retirando o aspecto severo de Jesus, pois Paulo coloca-se a sua disposição antes de receber as instruções. Pode-se também reconhecer o momento exato em que Paulo se torna um cristão, pois é possível imaginar que, a partir do instante em que se colocou à disposição de Cristo, sua mente já havia se transformado e ele já estava convertido. Na terceira passagem, de Atos 26:1-23, Cristo logo ao se revelar diz: “dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões”. A frase pode ser entendida como uma metáfora para a ideia de que seria difícil resistir à vontade de Deus ou à verdade divina. Essa frase pode passar uma ideia de que Paulo estaria resistindo a algo que, no fundo, ele sabia que deveria aceitar, pois sabia que era a vontade de Deus, mas que ia contra o que ele havia aprendido e o que se esperava dele. Talvez estivesse apenas lhe faltando uma prova ou indicação de que aquela seria a verdade inquestionável. Nesse sentido, essa interpretação explicaria porque a conversão se deu de forma tão rápida e definitiva ante a aparição de Jesus, evento fantástico que ele colocou acima de qualquer dúvida e que confirmava aquilo que, no íntimo, talvez Paulo já soubesse. A terceira versão também é a que Jesus mais fala com Paulo e mais lhe explica qual será sua missão.

DEPOIS DA CONVERSÃO

 

O momento histórico da conversão de Paulo é comentado na Legenda Áurea como se passando em um intervalo de um ano a partir da crucificação de Cristo, período no qual também se deu a morte de Estevão. Diz a Legenda Áurea: “Cristo foi crucificado no dia 8 antes das calendas de abril, Estevão foi lapidado no dia 3 de agosto do mesmo ano e Paulo foi convertido no dia 8 antes das calendas de fevereiro”. Por esse trecho, a crucificação de Cristo teria sido em 25 de março e a conversão de Paulo, em 25 de janeiro. A data se consolidou no calendário cristão, de forma que a data de fundação da cidade de São Paulo é o 25 de janeiro por conta do episódio de sua conversão. O nome de São Paulo foi dado à igreja e colégio jesuíta fundado em 1554 pelo fato de que a data da missa de consagração do local foi em 25 de janeiro, dia estabelecido no calendário cristão à conversão do santo.


Depois da conversão, Paulo permaneceu cego por três dias, período em que também não comeu nem bebeu, segundo a Bíblia. Sua visão foi restaurada por Ananias, discípulo de Jesus, a pedido do próprio Cristo que apareceu ao seu discípulo. Interessante notar que, sobre esse episódio, a Bíblia descreve que Ananias teria estranhado essa ordem de Jesus, uma vez que já tinha ouvido falar de Paulo (então Saulo) e sabia que ele era ferrenho inimigo dos cristãos. No entanto, ele cumpre o desejo de Cristo, restabelecendo a visão de Paulo e batizando-o.


Paulo inicia então seu ministério, tarefa que se apresentaria muito mais difícil da que exercera até então, tendo sido preso e torturado mais de uma vez ao longo de sua vida. No entanto, sua capacidade e fé o tornaram um dos principais líderes do Cristianismo nascente, ao lado de Pedro e outros apóstolos que estiveram junto de Jesus durante sua vida.

A suposta troca de nome de Saulo para Paulo teria se dado ainda nos primeiros anos de seu ministério. Na Bíblia, essa dupla denominação é explicitada no versículo 9 do capítulo 13 de Atos dos Apóstolos: “Então Saulo – também chamado Paulo – cheio do Espírito Santo, fitou nele os olhos” (Atos 13: 9). A partir desse ponto, as referências ao apóstolo são pelo nome Paulo no livro dos Atos dos Apóstolos. Dessa forma, não é possível concluir, pelos escritos bíblicos, se o apóstolo trocou seu nome para Paulo (e os motivos para essa troca, embora existam várias especulações a respeito) ou se era conhecido pelos dois nomes. No imaginário cristão, entretanto, se estabeleceu uma ideia de que Saulo corresponderia ao seu nome antes da conversão, quando era inimigo dos cristãos, e Paulo seria seu nome como apóstolo de Cristo.

Uma das características do pensamento de Paulo no seu ministério era o descolamento do Cristianismo das práticas do Judaísmo. Paulo considerava fundamental levar o Cristianismo aos chamados gentios (não-judeus), não considerando necessário que eles aderissem aos costumes característicos da fé judaica, como a circuncisão e as restrições alimentares. Esse posicionamento lhe rendeu algumas resistências entre alguns apóstolos originais de Cristo, que buscavam a aceitação de Jesus entre a comunidade judaica, não querendo entrar em maiores atritos com ela. Paulo, no entanto, considerava que a prioridade seria de espalhar a palavra de Cristo por toda parte e para todos, não querendo necessariamente vinculá-la aos costumes judaicos por considerá-la universal. Não se via comprometido com o Judaísmo ou com os posicionamentos de outros apóstolos, uma vez que a revelação chegara a ele pelo próprio Cristo. Por isso, passou a ser conhecido como Apóstolo dos Gentios.


Em seu apostolado, Paulo empreendeu diversas viagens missionarias, levando a doutrina cristã a várias localidades, sendo um dos principais responsáveis pela disseminação do Cristianismo na Europa. No final de sua vida, após percorrer inúmeras localidades e fundar igrejas cristãs ao longo de seu caminho, Paulo chegou à Roma, onde foi executado em circunstâncias não inteiramente esclarecidas. A tradição cristã diz que ele teria sido decapitado na mesma época do grande incêndio que assolou a cidade, quando Nero era imperador de Roma.

 

Como já comentado anteriormente, Paulo deixou uma obra escrita na forma de epístolas (ou cartas), conhecidas como Epístolas Paulinas, que estão entre os mais antigos escritos cristãos que chegaram ao nosso tempo. O Novo Testamento inclui catorze epístolas atribuídas a Paulo: Romanos, Coríntios 1, Coríntios 2, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, Tessalonicenses 1, Tessalonicenses 2, Timóteo 1, Timóteo 2, Tito, Filemom e Hebreus. Dessa forma, Paulo de Tarso se tornou um dos principais teólogos do Cristianismo em sua fase inicial, além de ter sido diretamente responsável pela disseminação e entrada do Cristianismo na Europa, onde ele se estabeleceria e se tornaria a principal força religiosa nos séculos seguintes.  

SIGNIFICADO DA CONVERSÃO

 

A conversão de Paulo se transformou em um episódio marcante da tradição cristã pelas circunstâncias como ocorreu e pelo próprio personagem envolvido. A Legenda Áurea comenta o significado da conversão da seguinte forma:


Celebra-se sua conversão, mas não a de outros santos, por três razões. A primeira, para servir de exemplo, a fim de que ninguém, por mais pecador que seja, desespere por perdão ao ver que aquele homem tão cheio de culpa foi depois tão cheio de graça. A segunda, para lembrar a alegria da Igreja muito triste anteriormente quando perseguida por ele, e depois muito alegre por sua conversão. A terceira, pelo milagre que o senhor manifestou nele, ao fazer do mais bárbaro perseguidor o mais fiel pregador. De fato, sua conversão foi milagrosa por quem a fez, pela maneira com que foi feita e pelo seu sujeito.


O jovem Saulo, naquele momento, era um dos maiores inimigos do Cristianismo, tendo se transformado, pela intervenção direta de Cristo, e um de seus mais ardentes defensores. Toda as convicções que tinha até aquele momento foram postas abaixo em um único instante e Paulo se transformou internamente em uma nova pessoa. Com isso, Jesus mostra mais uma vez seu imenso poder, realizando mais um milagre através da transformação de Paulo.


Outro significado que se pode extrair do episódio é o que ele diz sobre o arrependimento e o perdão, conceitos que muitas vezes se apresentam de forma um tanto complexa. A conversão de Paulo mudou a perspectiva do seu entendimento, fazendo com que ele passasse a ver seus atos até então como condenáveis e trazendo o arrependimento por eles, expressado em varias passagens bíblicas. Mas, se Paulo é hoje um dos principais santos do Cristianismo, isso não se deve a este momento em que se arrepende, e sim ao que ele fez a partir deste arrependimento. O ato de arrepender-se não o transformou automaticamente em santo, mas sim a vida que ele levou a partir de então, suas escolhas e a realização da missão que lhe foi dada.  Muitas vezes se vê interpretações sobre o arrependimento nas quais o mesmo é visto como uma espécie de momento mágico,  no qual a simples proclamação de algumas palavras tem o poder de apagar todo um passado e garantir a redenção espiritual. Em primeiro lugar, cabe considerar que até se pode enganar outros homens a respeito da sinceridade de um arrependimento, mas não se pode enganar Deus. Em segundo lugar, o arrependimento sincero não apaga as faltas do passado, mas permite que se construa um novo futuro, no qual essas faltas podem vir a ser compensadas e superadas. Dessa forma, o arrependimento não seria (e nem poderia ser) uma espécie de “truque” usado para evitar as consequências pelas faltas cometidas, mas um ponto de partida para um duro caminho de transformação que, esse sim, poderá levar à redenção. E, para Deus, este caminho está aberto a todas as pessoas, pois a todas é dada a possibilidade de arrepender-se sinceramente de suas faltas e ser perdoada.

 

Da mesma forma, o perdão divino não deveria ser visto como uma borracha que apaga os débitos de um pecador, deixando-o com uma espécie de “ficha limpa” para seguir a vida como antes. Esse entendimento levaria a um ciclo contínuo de “pecado-perdão-novo pecado-novo perdão” que nada traria de possibilidade de evolução moral do indivíduo, estagnando-o. O perdão divino poderia ser visto como uma virada de página, um ato que permitiria ao indivíduo saber que suas faltas pretéritas não o definirão para sempre, que há a possibilidade de um recomeço no qual se poderá realizar boas ações que vão se sobrepor ao passado faltoso. 

 

A história da conversão de Paulo possibilitaria ainda muitas outras reflexões como essas, mostrando assim porque é um importante episódio na liturgia cristã. E, como tal, se transformou em um tema recorrente na história da arte, sendo muitas vezes representada por artistas ao longo dos séculos, assunto que passará a ser tratado a partir de agora.

 

OBRAS 

Lorenzo Veneziano (1336-1379)
Conversão de Paulo, c. 1370
Painel de choupo, 26 x 33 cm
Staatliche Museen, Berlim
g

Fonte: Web Gallery of Art

A primeira das obras localizadas sobre o tema da Conversão de Paulo é do século XIV, pintada pelo artista italiano Lorenzo Veneziano. Trata-se de um painel em madeira que integrava a predela (parte inferior) de um retábulo que foi desmembrado posteriormente. Os cinco painéis da predela representavam os seguintes temas: a Conversão de Paulo, o Chamado dos Apóstolos Pedro e André, Cristo resgatando Pedro do afogamento, a Pregação do Apóstolo Pedro e a crucificação de Pedro. Todos estes painéis estão atualmente nos Staatliche Museen de Berlim. O retábulo representa Cristo entregando as chaves da Igreja a Pedro e está no Museo Correr, em Veneza.​

Lorenzo Veneziano foi um pintor que atuou na cidade de Veneza, no século XIV, caracterizando-se como um dos primeiros artistas a realizar a transição dos modelos bizantinos para a pintura gótica, ou seja, a procurar inserir um maior naturalismo em suas representações pictóricas, inserindo seus elementos em um espaço mais próximo à realidade em vez do espaço etéreo e dourado que caracterizava a pintura bizantina. Nessa pintura, percebe-se ainda o uso de tons dourados ao fundo e figuras estilizadas e bidimensionais, mas esses elementos já tentam se inserir em um espaço tridimensional, se dispondo de forma a passar a ideia de uma cena inserida em um espaço físico real.

 

Paulo, na cena, está caído ao solo, conforme a narrativa bíblica, ao lado do seu cavalo, também arrojado ao solo, em posição que evoca submissão, como se estivesse “de joelhos”. Paulo e seus acompanhantes usam vestes militares que parecem ser do período medieval, ou seja, contemporâneas ao momento em que a pintura foi elaborada. Cristo aparece na parte superior central da pintura, como que pairando no ar, enquadrado apenas da cintura para cima e envolto por uma espécie de auréola que rompe o espaço natural. Estende o braço direito em direção à Paulo e parece lançar pequenos raios de luz para baixo, também na direção do apóstolo. Paulo é o único que dirige o olhar para Cristo, seus acompanhantes olham em volta, passando impressão de medo e confusão, conforme as narrativas bíblicas.

Luca di Tommè (c. 1330-1389)
A conversão de São Paulo, Década de 1380

Têmpera de ovo e ouro sobre madeira, 31 x 39 cm

Art Museum, Seattle

Fonte: Web Gallery of Art

Como a pintura anterior, este painel também integrava a predela de um retábulo, tendo siso desmembrada do mesmo. Seu autor, o pintor italiano Luca di Tommè, também viveu no século XIV, mas na cidade de Siena, de forma que seu trabalho é influenciado pelos artistas locais, como Duccio e Simone Martini.

 

A pintura apresenta soluções formais semelhantes à anterior, se caracterizando também por apresentar figuras estilizadas, de aparência mais plana, tentando se inserir em um espaço tridimensional. Cristo novamente surge do alto, do canto superior esquerdo (em referência ao espectador) como se estivesse voando, envolto por um espaço luminoso dourado que parece romper o espaço físico. Paulo está caído no chão, olhando para Cristo. Seus acompanhantes estão armados e parecem trajar-se como soldados, enquanto Paulo, caído no chão, segura uma espada. Essa espada aparecerá ainda em outras representações, caracterizando-se como um atributo associado à figura do apóstolo. Pode ser um símbolo de sua vida pregressa, como perseguidor e executor dos cristãos, ou ainda estar associada à forma como ele será morto, por decapitação. O artista optou por não incluir na cena as montarias do grupo, conforme consta na narrativa bíblica.

Novamente, percebe-se que Cristo estende seu braço direito em direção à Paulo no chão, e parece lançar raios de luz em direção ao apóstolo. Entre os raios, entretanto, percebe-se alguns caracteres semelhantes a letras, passando a impressão de que a luz lançada por Jesus continha seus ensinamentos (ou sua palavra), recebidos por Paulo e que resultaram na sua conversão. Se essa foi a intenção do artista, percebe-se a tentativa de interpretação das qualidades da luz envolvida no episódio, que iluminaria também o entendimento do apóstolo.

Luca Signorelli (1445-1523)
A conversão de Paulo, 1477-82
Afresco, 238 x 200 cm
Basílica de Santa Casa, Loreto

Fonte: Web Gallery of Art

A terceira imagem aqui apresentada trata-se de um afresco pintado pelo artista renascentista italiano Luca Signorelli, natural da cidade de Cortona. O afresco integra o conjunto decorativo pintado por Signorelli na Sacristia de São João, que faz parte do Santuário da Santa Casa de Loreto.

Na imagem, novamente percebe-se a ausência das montarias e Paulo caído no chão. Desta vez, ele não segura a espada, mas parece ter acabado de soltá-la, uma vez que ela se encontra desembainhada até certo ponto, como se ele estivesse puxando-a, mas tivesse desistido da ação antes de conclui-la. Essa conformação reforça a interpretação da espada como símbolo de sua vida pregressa, uma vez que ele não a segura mais após a aparição de Cristo. Também reforça essa interpretação o fato de que a parte da espada desembainhada lembrar uma cruz, como simbolizando que a transformação que se operava em Paulo.

Cristo surge novamente da parte superior da pintura, desta vez pelo lado direito. Como antes, a aparição de Cristo parece se dar de um rompimento do espaço natural, enfatizando o caráter fantástico da cena. Também se percebe novamente a solução formal do braço direito de Cristo estendido em direção a Paulo, de onde parece emanar uma luz dourada. A diagonal do braço de Cristo dialoga com a diagonal da espada de Paulo, ligando os elementos.

Giovanni Francesco Rustici (1475-1554)
Conversão de São Paulo, c. 1525
Óleo sobre painel, 112 x 194 cm
Victoria and Albert Museum, Londres

Fonte: Web Gallery of Art

Giovanni Francesco Rustici foi um artista italiano que se notabilizou mais por seu trabalho como escultor do que como pintor. No entanto, uma das telas atribuídas a ele é justamente sobre a conversão de Paulo. Rustici tinha uma aproximação com artistas do atelier de Verrocchio, incluindo Leonardo da Vinci, com quem chegou a colaborar. De fato, é possível observar a influência do afresco inacabado de Leonardo, A Batalha de Anghiari, na representação dos acompanhantes de Paulo, que parecem estar em meio a uma batalha tal a sensação de agitação e movimento retratada na cena.

A composição como um todo já possui um maior senso de profundidade e perspectiva do que as apresentadas até agora, mostrando a evolução técnica ocorrida no período renascentista em termos de representações pictóricas de espaços tridimensionais. O artista também optou por não retratar diretamente Jesus na tela, substituindo-o apenas por uma forte luz dourada proveniente da parte superior central da imagem. O cavalo de Paulo destaca-se na parte inferior central da composição, possuindo uma coloração mais clara e brilhante do que os outros. No meio da confusão generalizada que ocorre no solo, Paulo está caído no chão e parece até um tanto diminuto em relação aos outros elementos da composição.

A pintura apresenta ainda alguns elementos arquitetônicos junto ao horizonte, inseridas em uma luminosidade distinta da parte inferior da pintura. Segundo informações do site do Museu Vitoria e Albert, existe a possibilidade desses elementos arquitetônicos terem sido inseridos posteriormente à pintura, revelando talvez a colaboração de outro artista. A intenção desses elementos pode ter sido de representar Jerusalém e Damasco, passando a ideia do trajeto que o apóstolo percorria no momento da conversão.

Parmigianino (1503-1540)
A conversão de São Paulo, c. 1527-28
Óleo sobre tela, 177,5 x 128,5 cm
Museu Kunsthistorisches, Viena

Fonte: Web Gallery of Art

Parmigianino foi um pintor italiano, natural de Parma, considerado um dos grandes expoentes do estilo que ficou conhecido como maneirismo. Este estilo se caracterizava formalmente por interpretações formais diferenciadas dos artistas, muitas vezes resultando em elementos com algumas distorções anatômicas, como na célebre obra de Parmigianino conhecida como a Madonna do Pescoço Comprido.

Nesta obra, percebe-se essas distorções mais na representação do cavalo do que de Paulo. O artista optou por representar apenas Paulo e seu cavalo, excluindo outros personagens da cena. O cavalo está com as patas dianteiras erguidas e ocupa toda a parte superior da pintura. A cabeça do animal é representada em proporções bem menores ao resto do corpo, causando um estranhamento ao espectador, especialmente em ralação ao pescoço largo. Paulo está caído no chão com expressão de medo e surpresa, dirigindo seu olhar para o alto, provavelmente seguindo a direção da voz que ouve. A espada aparece no chão, caída aos seus pés, como se ele a tivesse soltado na sua queda do cavalo.

Parmigianino também não inclui a figura de Cristo na tela. Ele é representado por uma luz dourada que emana da parte superior esquerda da pintura, surgindo entre nuvens escuras, causando a impressão de irromper através de uma fenda. A cena apresenta uma luminosidade direcionada, que parece vir justamente da fenda nos céus, já lembrando o estilo barroco. Ao longe, o artista incluiu alguns elementos arquitetônicos provavelmente representando a cidade de Damasco.

De todas as representações apresentadas até aqui, esta é a que passa uma impressão mais intimista do episódio, concentrando-se na figura de Paulo. A expressão de seu rosto e o braço estendido ao ar, como se estivesse tentando alcançar algo, passam uma ideia sobre os sentimentos do apóstolo no episódio, conferindo à cena uma maior impressão psicológica do personagem. Além disso, a redução dos elementos em cena à Paulo, o cavalo e a luz, permite que se estabeleça entre eles algumas relações interessantes. Primeiramente, o contraste entre a luz, etérea e divina, e o cavalo, uma grande massa material, pesada e animalesca. Paulo, posicionado na parte inferior da pintura, aparece como que subordinado por estes elementos, arrancado da materialidade grosseira e selvagem e iluminado pela luz divina. Essa composição formal é bastante similar à que Caravaggio utilizará anos mais tarde em uma de suas representações do episódio, talvez a mais célebre de todas.

Andrea Schiavone (c. 1510-1563)
Conversão de Saulo, 1540-45
Óleo sobre tela, 205 x 265 cm
Fondazione Querini Stampalia, Veneza

Fonte: Web Gallery of Art

Andrea Schiavone foi um pintor e gravador que atuou na cidade de Veneza durante o século XVI. Seu estilo é influenciado pelos grandes artistas locais da época, como Ticiano e Parmigianino. De fato, a luminosidade desta tela remete à obra tardia de Ticiano, contemporânea a Schiavone.

Schiavone se utiliza da formatação mais tradicional na representação do episódio, mostrando toda a comitiva de Paulo, com o apóstolo caído no chão na parte inferior central da pintura e Cristo surgindo dos céus, na parte superior central. O corpo de Cristo ocupa a parte superior esquerda da pintura (em referência ao espectador), enquanto Paulo posiciona-se na parte inferior direita, de modo que suas cabeças estão quase que alinhadas no centro da pintura, ligação que fica enfatizada pelos braços estendidos de ambos. 

A cena toda passa muita sensação de movimento e agitação. Percebe-se que as figuras estão submetidas a um intenso vento, que se faz notar por vestes e estandartes se contorcendo no ar. As figuras, por sua vez, também se posicionam em poses que passam a impressão de agitação e confusão. 

Novamente, percebe-se o uso de uma fonte principal de luz, que emana da figura de Cristo, projetando-se sobre os corpos abaixo. A cor avermelhada das vestes de Cristo dialoga com a coloração da capa que se agita sobre o cavalo de Paulo, transformando-o em um dos pontos mais de cor mais brilhante na obra. De forma geral, a obra apresenta uma coloração terrosa que, combinada com a agitação da cena e os indícios do vento que sopra cria um ambiente atmosférico particular, efeito característico da pintura veneziana da época. Neste caso, esse ambiente reforça o caráter extraordinário e fantástico do episódio representado.

Michelangelo Buonarroti (1475-1564)
A conversão de Saulo, 1542-45
Afresco, 625 x 661 cm
Cappella Paolina, Palazzi Pontifici, Vaticano

Fonte: Web Gallery of Art

Michelangelo Buonarroti, um dos maiores expoentes da história da arte ocidental, dispensa apresentações. Este afresco integra a Capela Paulina, no Vaticano, juntamente com outra obra pictórica de Michelangelo, O Martírio de São Pedro. Obras de grandes proporções, foram realizadas no final da carreira do artista, em momento próximo ao que ele pintou o afresco O Juízo Final, na Capela Sistina, também no Vaticano.

Como em outras obras pictóricas de Michelangelo, esta pintura apresenta uma estrutura circular, composta pelos elementos terrestres e celestes vistos em conjunto. Nesse aspecto, Michelangelo tomou algumas liberdades em relação à narrativa bíblica, povoando o céu de personagens que surgem juntamente com Cristo, lembrando assim a formatação não apenas de seu afresco anterior, O Juízo Final, como ainda do afresco A Criação de Adão, no qual Deus também surge diante de Adão acompanhado de um séquito de personagens. Na parte inferior da pintura, a comitiva de Paulo também é numerosa, incluindo não apenas os soldados que lhe serviam de escolta, mas uma quantidade considerável de pessoas em geral. Todos esses personagens formam duas massas distintas de figuras, que se dispõem na tela de forma a criar a estrutura circular que embasa a imagem.

Dos céus, Cristo surge desta vez em corpo inteiro, representado em escorço, com a cabeça à frente. Ele estende seu braço direito para baixo, sendo que dele se projeta uma luz como um longo facho dourado, em direção a Paulo, que está caído no chão. Essa luz lançada por Cristo direciona a iluminação em toda a imagem, mas sua ação não causa o mesmo efeito que nas obras de Parmigianino e Schiavone apresentadas anteriormente. A obra de Michelangelo parece apresentar uma iluminação mais homogênea, com contrastes de claro e escuro bem menos intensos, ainda que se perceba que o facho lançado por Cristo é a principal fonte de luz e ilumina Paulo como um holofote teatral. Ainda assim, a obra de Michelangelo parece estar mais próxima dos padrões de luminosidade renascentistas, de clareza e racionalidade, enquanto os dois artistas apresentados anteriormente já anunciam a luz dramática associada ao barroco.

No chão, percebe-se outra liberdade narrativa utilizada por Michelangelo: ele representa Paulo como um idoso, embora o episódio de sua conversão tenha ocorrido em sua juventude. A que se considerar, nessa questão, que a imagem mais facilmente associada a Paulo é dele já idoso, com longas barbas brancas. Além disso, não foi a primeira vez que Michelangelo ignorou essa questão etária na representação de personagens em cenas religiosas. Basta lembrar de sua famosa escultura Pietá, na qual ele inverte o procedimento e representa uma Virgem Maria jovem segurando o corpo morto de seu filho Jesus, já adulto. 

A luz lançada por Cristo nos céus, chega ao chão e cai diretamente sobre o apóstolo Paulo. O efeito disso, para a multidão em volta, é de espantá-la de perto do apóstolo. De fato, a impressão que se tem é a de que está se abrindo um “clarão” em torno de Paulo, que fica apenas assistido por três pessoas que permanecem junto dele. Paulo está de olhos fechados, provavelmente ofuscado pela luz intensa e já com a cegueira que o acompanharia pelos três dias seguintes.

Apesar da multidão presente no chão, percebe-se apenas um cavalo entre elas, o cavalo do qual Paulo caiu. Como Cristo, o cavalo também é representado em escorço, mas com sua cabeça para o fundo da imagem. Mais uma vez, essa configuração permite que se estabeleça uma relação entre o animal e a luz. Enquanto Cristo vem para frente, na direção de Paulo e lança sua luz sobre ele, o cavalo no qual Paulo estava montado vai para trás, afastando-se de Paulo, como se a luz de Cristo, que representa o entendimento e a razão, afastasse o lado animal e bestial que estava junto a Paulo, representado pelo cavalo em fuga.

Tintoretto (1518-1594)
A conversão de Saulo, c. 1545
Óleo sobre tela, 152 x 236 cm
National Gallery of Art, Washington

Fonte: Web Gallery of Art

Tintoretto também foi um pintor que atuou em Veneza, no século XVI, sendo considerado um dos expoentes da escola maneirista. De longa carreira, esta obra pertence à juventude do artista, pintada quando ele ainda não tinha completado 30 anos de idade.

A obra é uma cena do mais absoluto caos. Jesus surge dos céus, na parte superior esquerda da tela, com o rosto de perfil olhando direto em frente, para a parte superior direita da pintura, ou seja, não olha para baixo em direção a Paulo. Seu braço direito está estendido horizontalmente, acompanhando seu olhar, e dele parece emanar uma luz dourada que não vai para baixo, mas reflete nas nuvens escuras, criando assim um contraste inusitado.

A ação de Cristo parece causar uma tremenda confusão no solo. Paulo encontra-se estendido no chão, no centro inferior da pintura, olhando para o lado e passando impressão de intenso espanto e confusão. Ele está na margem de um rio, no qual aparentemente foram lançados vários membros e cavalos de sua comitiva pelo estranho fenômeno nos céus. O resto da cena é puro caos, com pessoas fugindo e lançadas ao solo, cavalos empinando e um desespero generalizado representado pelo homem montado em primeiro plano que leva as mãos à cabeça.

A obra é visualmente interessante, apresentando contrastes de cores claras de tecidos e vestes com o fundo escuro, além de bastante virtuosismo na representação dinâmica da cena como um todo, mas parece afastar-se muito das propostas do tema propriamente dito. De fato, a impressão que passa é a de que o artista se utilizou do tema como desculpa para pintar uma cena de batalha, no que parece ter sido bem sucedido, mas a cena acaba desvirtuando a narrativa em termos temáticos. Cristo parece estar lançando um castigo sobre a humanidade, indiferente à presença de Paulo, que está caído no chão como se fosse uma vítima de batalha. O caos generalizado em torno também guarda pouca relação com o tema em si, mas adequa-se bem ao calor de uma batalha. Enfim, trata-se de uma extraordinária cena de guerra identificada como sendo a conversão de Paulo.

Cristofano Gherardi (1508-1556) 
Conversão de São Paulo, 1555
Afresco
Museu Diocesano, Cortona

Fonte: Web Gallery of Art

Cristofano Gherardi foi um pintor que atuou no século XVI em várias localidades italianas. Seguidor e colaborador de Vasari, pintou este afresco em uma encomenda feita a este para um oratório na cidade de Cortona, que hoje faz parte do Museu Diocesano desta cidade. O afresco é composto ainda por outras representações do Antigo e do Novo Testamento.

O afresco apresenta algumas características já consolidadas de representações anteriores da cena, como a figura de Cristo surgindo nos céus e representada apenas da barriga para cima. Possui um número relativamente pequeno de personagens além de Cristo e Paulo: três soldados e o cavalo de Paulo. O apóstolo aparece em plena queda do seu cavalo, ainda antes de tocar o solo, possibilitando assim uma maior aproximação dos personagens da superfície da pintura, em uma solução aparentemente original na representação da cena. 

A cena, no todo, parece trazer uma sensação de aglomeração, com os personagens se sobrepondo uns aos outros. Até mesmo a aparição de Cristo parece muito próxima, quase passando a impressão de que Paulo foi empurrado de cima do cavalo por Jesus. Essa proximidade dos elementos cria ainda uma sensação visual interessante: a figura do cavalo e do soldado com o torso nu parecem, juntas, formar a representação de um centauro, ser característico da mitologia grega. Se essa foi a intenção do pintor, não se sabe, mas cabe considerar que o centauro era um ser que unia o humano (racionalidade) e o animal (irracionalidade), podendo ser traçado um paralelo com o episódio retratado, no sentido de que a conversão trouxe o divino (luz e sabedoria) ao humano (sombras e ignorância).

 Pieter Brueghel, o Velho (c. 1525-1569)
A Conversão de Saulo, 1567
Óleo sobre painel, 108 x 156 cm
Kunsthistorisches Museu, Viena

Fonte: Web Gallery of Art

Pieter Brueghel, o Velho, foi um dos principais expoentes da pintura renascentista flamenga. E, saindo da Itália, percebe-se uma mudança significativa na formatação visual da obra, que não utiliza os recursos consagrados até então na representação do episódio, mas insere-o em uma pintura de paisagem, em um estilo característico da obra do artista e da pintura flamenga em geral.

A pintura mostra uma paisagem montanhosa e rochosa, na qual se desloca o que seria a comitiva de Saulo indo em direção a Damasco, mas que mais parece um verdadeiro exército, tal a quantidade de homens. Os personagens estão vestidos com roupas contemporâneas à época do pintor. Saulo aparece de forma diminuta no centro da tela, caído no chão logo após o surgimento da luz que o cega. Ao seu redor, a comitiva testemunha o ocorrido. A obra não mostra explicitamente a figura de Cristo, e sim uma convulsão de nuvens no canto superior esquerdo da obra, da qual se projeta um raio de luz que se reflete na superfície rochosa. 

Como em outras obras do artista, o episódio em si ocupa uma parte relativamente pequena no que se apresenta, essencialmente, como uma paisagem repleta de variados tipos humanos. Esse estilo particular cria cenas muito interessantes, nas quais os episódios representados parecem se inserir em uma realidade maior, sendo que essa reflete paisagens e tipos comuns aos espectadores da sua época, que assim podiam imaginar esses eventos se passando em sua própria terra e em no seu próprio tempo, aproximando acontecimentos fantásticos da realidade cotidiana local.

 Hans Speeckaert (1540-1577)
Conversão de São Paulo no Caminho a Damasco, 1570-77
Óleo sobre tela, 147 x 196 cm
Museu do Louvre, Paris

Fonte: Web Gallery of Art

Hans Speeckaert foi um pintor flamengo que estudou e trabalhou em Roma durante o século XIV. Talvez por isso, percebe-se nesta obra a presença de vários cânones da representação da conversão de São Paulo utilizados na arte italiana.

Cristo surge na parte central e superior da tela, projetando-se em escorço por entre um grupo de pequenos anjos e saindo de uma espécie de fenda de luz dourada. O artista representa os raios de luz partindo de Cristo em direção a São Paulo, que está caído no meio da estrada cercado por soldados que tentam socorrê-lo ou fogem assustados.

O que mais chama atenção na tela é o contraste de claros e escuros, propiciado pela narrativa do episódio que permite o uso de uma fonte de luz que irradia por todo o ambiente. Esse efeito já aproxima a obra de uma luz teatral, que terá um uso mais intenso no período barroco, criando um clima dramático e realista. Da mesma forma, a obra passa uma intensa sensação de movimento e dinamismo, o que também a aproxima do estilo barroco.

Denys Calvaert (1540-1619)
Conversão de Saulo, c. 1580
Óleo sobre tela, 92 x 133 cm
Coleção privada

Fonte: Web Gallery of Art

Denys Calvaert foi um pintor de origem flamenga que se estabeleceu em Bolonha, na Itália, ainda jovem, permanecendo lá o resto de sua vida, tornando-se conhecido como Dionisio Flammingo. Atuou na segunda metade do século XVI e início do século XVII, sendo sua obra associada ao estilo maneirista. Foi também professor com grande número de estudantes, tornando-se assim uma figura de influência na arte bolonhesa do período.

A sua representação da conversão de Paulo já prenuncia a luminosidade que mais tarde será associada ao estilo barroco, na qual se destacam os fortes contrastes de claro e escuro, bem como o uso de fontes de luz diretamente direcionadas a determinados pontos da cena, criando um ambiente teatral que acentua a dramaticidade e direciona o olhar do espectador. Esse recurso, associado aos elementos da narrativa da conversão de Paulo, cria uma atmosfera especial na qual as qualidades divinas da luz que atinge o apóstolo se associam à luz teatral especialmente direcionada a ele. Dessa forma, a luminosidade barroca parece criar novas possibilidades criativas na representação do episódio, que serão exploradas por diversos artistas nos anos seguintes.

Em termos formais, a representação parece seguir os padrões já consagrados na arte italiana do período, com Cristo surgindo dos céus em uma espécie de fenda entre as nuvens na parte superior central da tela e lançando jorros de luz em direção à Paulo, que está caído ao solo na parte central da tela. A figura de Cristo, no entanto, é representada com cabelos e barbas brancos, lembrando as representações humanas de Deus usadas em outras obras, como por Michelangelo nos afrescos do teto da Capela Sistina.

Paulo está caído ao solo, segurando sua espada com sua mão esquerda. A espada é representada somente até a metade, passando a impressão que a ponta extrapolou os limites da borda do quadro e, dessa forma, assemelhando-se a uma cruz. A imagem ainda mostra, em posição central de destaque, um dos soldados da comitiva do apóstolo socorrendo-o no chão, com expressão bondosa e vestindo um chapéu vermelho, que dialoga com as pontas da capa do apóstolo no chão, formando assim um triângulo que estrutura a posição dos dois personagens centrais da obra. Ao redor dos personagens centrais, em pontos mais obscuros da tela, estão os outros integrantes da comitiva e seus cavalos em postura de confusão e medo, formando um semicírculo ao redor do centro iluminado e conferindo os elementos dinâmicos da cena.

Lodovico Carracci (1555-1619)
A Conversão de São Paulo, 1587-88
Óleo sobre tela, 278 x 170 cm
Pinacoteca Nazionale, Bolonha

Fonte: Web Gallery of Art

Lodovico Carracci foi um dos membros da família de artistas Carracci, que atuou em Bolonha, na Itália, na segunda metade do século XVI e início do século XVII. Além dele, são também expoentes da família Carracci os primos de Lodovico, Agostino Carracci e Annibale Carracci, além de Antonio Carracci, filho de Agostino. Lodovico Carracci foi um dos primeiros pintores a abandonar o estilo maneirista tardio e adotar outras soluções formais em sua obra, embora nunca tenha atingido o mesmo sucesso de seu primo Annibale. Lodovico nunca deixou a cidade de Bolonha, ao contrário de seus primos que atuaram em Roma. De temperamento mais tímido, seu trabalho apresenta muitas características pessoais. Atuou também como professor.

Lodovico Carracci representa a conversão de São Paulo em uma tela verticalizada (formato retrato), trazendo os personagens mais perto do ponto de vista do espectador, recurso que também se associa ao estilo barroco. Embora o apóstolo ocupe a região central inferior do quadro, a tela se estrutura em uma diagonal que surge da nuvem iluminada na parte superior direita da cena e vai até o soldado e o rosto de Paulo, situados na parte inferior esquerda. Novamente se percebe o uso da luz teatral partindo da nuvem e direcionada ao apóstolo, atingindo também o soldado. Apesar de apresentar fortes contrastes de luz nos personagens principais, a tela parece apresentar uma luminosidade geral um pouco mais homogênea que a obra anterior.

O artista aqui optou por excluir a figura de Cristo da representação, apenas sugerindo sua aparição com a presença de uma nuvem iluminada, da qual parte a luz que chega aos personagens centrais da cena. Chama atenção também o cavalo do apóstolo, que ocupa a região central e à direita da tela. A maior parte do cavalo está encoberta pela sombra criada pela luz acima, que deixa visível apenas seu focinho e a parte traseira. Novamente, isso pode ter sido um recurso para enfatizar a questão da racionalidade/divindade contra a irracionalidade/bestialidade que envolve a narrativa.

Mais uma vez, o restante da comitiva de Paulo se espalha ao redor dos personagens centrais e estão imersos em regiões obscuras da tela. A excepcionalidade da luz que atinge os personagens principais da cena pode ser sentida pelo espectador pela intensa luminosidade que emana dos braços e pernas do soldado, das pernas de Paulo e da parte traseira do cavalo, que estão na mesma intensidade que na nuvem acima deles. 

Caravaggio (1571-1610)
A Conversão de São Paulo, c. 1600
Óleo sobre madeira, 237 x 189 cm
Coleção Odescalchi Balbi, Roma

Fonte: Web Gallery of Art

Michelangelo Merisi da Caravaggio, ou simplesmente Caravaggio, é um artista que também dispensa maiores apresentações, constituindo-se hoje em um dos principais expoentes da história da arte ocidental e um dos maiores nomes associados ao estilo barroco. Sua obra se caracteriza pelos intensos contrastes de claro e escuro, utilizados na criação de uma luz que se projeta diretamente sobre os personagens, criando um efeito teatral e dramático que passou a ser conhecido como tenebrismo. Esse efeito se adéqua muito bem à narrativa da conversão de São Paulo, que fala de uma luz de qualidades divinas que atinge e cega o apóstolo, de forma que o artista pintou dois quadros com esse tema, conforme será visto agora.

No primeiro deles, Caravaggio ainda utiliza elementos convencionais de representações anteriores, como a figura de Cristo que surge das alturas na parte superior da tela e da qual se projeta a luz que atinge Paulo. Aqui, Cristo tem seus dois braços estendidos em direção ao apóstolo, que ocupa a região inferior da tela, e está acompanhado de um anjo jovem que se abraça a ele. Percebe-se também um ramo vegetal que se projeta do braço esquerdo de Cristo, bem como uma pequena paisagem que se destaca das trevas, possibilitando que o ramo vegetal seja mais perceptível.

Paulo está caído no chão, levando as duas mãos aos olhos, em gestual que demonstra a intensidade da luz que atinge seus olhos e o cega. Embora, em representações anteriores do episódio, algumas vezes se tenha visto Paulo erguendo um dos braços e tentando proteger seus olhos da luz intensa que os atinge, é a primeira vez que se vê o apóstolo levando as duas mãos aos olhos, em um gestual desesperado que denuncia dor ou um extremo desconforto causado pela força da luz.

Ainda compõe a cena um soldado da comitiva e o cavalo de Paulo. O animal está quase todo imerso nas sombras, sendo possível perceber com mais nitidez apenas sua cabeça e a parte traseira. Interessante observar que o cavalo solta uma espécie de baba pela boca, também denunciando alguma alteração física provocada pelos eventos que se sucedem. O soldado tenta segurar o animal, que parece ainda estar empinado, no movimento que provavelmente derrubou Paulo.

A cena mantém o clima de agitação, surpresa e caos que se verifica na maior parte das representações do episódio. A luz que se projeta nos personagens é a única coisa que permite visualizá-los, ainda que parcialmente. De resto, estão completamente inseridos nas trevas, que constitui também o fundo da cena, com exceção da pequena representação da paisagem na parte direita da obra, que parece não pertencer à realidade visualizada na obra, quase como se o mundo real estivesse se fechando em uma fenda, ao contrário de representações anteriores nas quais o mundo espiritual brota de uma fenda revelando a figura de Cristo. Nesse sentido, a pequena paisagem pode também remeter à perda da visão de Paulo, como se a realidade física estivesse desaparecendo de sua percepção visual.

 

Além disso, Caravaggio também traz um elemento inédito nesta representação, que são as representações de sensações físicas desagradáveis nos personagens, notadamente em Paulo e no cavalo, que parecem estar sentindo intensa dor e mal estar. Essa opção seria abandonada pelo artista na sua representação posterior, como se verá adiante.

Caravaggio (1571-1610)
A Conversão no Caminho para Damasco, 1600-01
Óleo sobre tela, 230 x 175 cm
Capela Cerasi, Igreja de Santa Maria del Popolo, Roma

Fonte: Web Gallery of Art

Considerada pelo historiador da arte Roberto Longhi como a mais revolucionária obra de arte sacra da história, essa pintura também é, provavelmente, a representação mais conhecida do episódio da Conversão de São Paulo. Aqui, Caravaggio abandona praticamente todos os padrões e códigos visuais que se consolidaram na representação da narrativa ao longo dos anos, concentrando-se no que talvez seja a essência da mesma: a revelação ocorrida por uma luz divina.

A obra já surpreende no primeiro olhar devido à presença ostensiva e massiva do cavalo, ocupando a maior parte da tela. Ainda que este protagonismo dado ao animal, e não ao santo, possa ser devido ao comportamento rebelde e provocativo do artista, é de se considerar também que alguma adequação ao tema está presente nessa escolha, uma vez que não se tem notícia de maiores polêmicas ou recusa por parte dos religiosos que encomendaram a pintura.

O quadro é verticalizado, de grandes proporções, sendo que o cavalo e o acompanhante de Paulo ocupam cerca de dois terços do espaço da tela, nas partes superior e central. Paulo está caído no chão e ocupa o terço restante, na parte inferior da tela. Diferente da obra anterior de Caravaggio, desta vez o clima que prevalece na representação é de devoção e êxtase. Devoção por parte do acompanhante e mesmo do cavalo, já que, no ato de segurar as rédeas e controlar o animal, ambos parecem baixar suas cabeças humildemente diante da luz que vem de cima. O cavalo ainda dobra uma das pernas dianteiras, enfatizando este aspecto de submissão. E êxtase por parte de Paulo que, embora esteja caído no chão e com os olhos fechados devido à intensidade da luz, parece estender os braços como que recepcionando-a. Ainda que a intenção do artista ao representá-lo de braços estendidos, parecendo tentar tocar algo, possa ter sido fazer uma alusão à cegueira do apóstolo, a gestualidade de Paulo colocada sob a magnífica luz representada por Caravaggio, dá também uma impressão de que ele está em um momento de graça e revelação, como se estivesse tentando se alçar em direção à luminosidade divina que o atinge.

Dessa forma, pode-se ver no quadro um contraste entre a materialidade pesada do animal que se posiciona acima de Paulo, como que ameaçando despencar sobre ele, e a espiritualidade etérea trazida pela luz que incide sobre os personagens. Como a fonte dessa materialidade, que é o cavalo, baixa a cabeça diante da luz, em atitude submissa, atitude reforçada pelo homem que segura suas rédeas, pode-se sentir uma espécie de qualidade superior desta luz, provocando um momento absolutamente especial e único, que de alguma forma é capaz de inibir as reações instintivas do animal pela sua simples incidência. No chão, o efeito da luz sobre Paulo parece ser o de proporcionar-lhe um arrebatamento que o faz estender os braços e deixar que a luz incida sobre ele, provocando uma espécie de êxtase de revelação. Se o apóstolo fecha os olhos para protegê-los, não leva as mãos a eles como na pintura anterior, demonstrando estar sentindo dor. Ao contrário, estende-os como que tentando alcançar a luz.

Também diferentemente da obra anterior, dessa vez Caravaggio optou por não incluir nenhuma figura divina na representação. O aspecto divino do episódio fica apenas por conta da luz que incide sobre os personagens e a reação deles a ela. Longe de diminuir a ideia de estarmos testemunhando um acontecimento extraordinário, essa escolha parece aumentar esse sentimento, envolvendo-o em uma aura de mistério, uma vez que presenciamos apenas os efeitos da luz sobre os personagens, que são intensos, mas não vemos a fonte, podendo apenas imaginar o que eles estão presenciando.

A misteriosa luz que incide sobre as figuras do quadro é também a que nos revela a cena mostrada, pois trata-se da única fonte de luz que nos possibilita visualizar os personagens. O fundo do quadro, seguindo o estilo de Caravaggio, é completamente preto e a luz direcionada é a que revela a cena ao espectador. Pode-se imaginar que, se essa luz fosse “apagada”, a cena ficaria indistinguível, completamente imersa na escuridão. Dessa forma, a maneira de Caravaggio pintar talvez seja a que melhor traduz visualmente a essência do episódio e o significado da conversão. Nas palavras do próprio Paulo, em sua Segunda Epístola aos Coríntios: “Pois Deus, que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2 Conríntios 4:6, grifos nossos).

Juan Antonio Frias y Escalante (1633-1669)
A Conversão de São Paulo, 166? (década provável)
Óleo sobre tela
Museo Cerralbo, Madri.

Fonte: Web Gallery of Art

Juan Antonio Frias Y Escalante foi um pintor espanhol que viveu no século XVII e atuou na cidade de Madri. Seu estilo se associa à arte barroca decorativa. Morreu jovem, ainda antes de completar 40 anos.

 

Sua representação do episódio da conversão de São Paulo é uma tela de grande dinamismo e movimento, com uma estrutura circular na disposição dos personagens, lembrando o estilo de Rubens e Ticiano. Embora o estilo seja eminentemente barroco, as soluções formais adotadas pelo artista remontam às utilizadas tradicionalmente na representação do episódio, conforme visto anteriormente.

 

Paulo está caído no chão, na parte central inferior na tela, amparado por um dos integrantes da sua comitiva. Nos dois lados do apóstolo se veem cavalos e cavaleiros em grande agitação, em posicionamento circular. Ao fundo, em um céu nublado, percebe-se a incidência de uma luz mais forte. O artista não representou Cristo ou qualquer figura de caráter divino.

 

O que sobressai na tela é a sensação de movimento, conferida pela intensa agitação dos cavalos e dos cavaleiros e pela sua disposição circular. Até mesmo Paulo, que está caído no chão passa essa sensação, uma vez que ainda tem uma de suas pernas sobre o cavalo e parece estar em vias de cair também. A iluminação do quadro é homogênea, o que faz com que a questão da luz envolvida no episódio não tenha muito destaque.

Karel Dujardin (1626-1678)
A Conversão de São Paulo, 1662
Óleo sobre tela, 187 x 135 cm
National Gallery, Londres

Fonte: Web Gallery of Art

Karel Dujardin foi um pintor holandês que viveu no século XVII e atuou principalmente em Amsterdam e Haia. Mais conhecido por suas paisagens campestres, também se dedicou à pintura de temas religiosos e mitológicos. Morreu durante uma viagem à Itália, na cidade de Veneza.

 

A pintura, de grandes proporções, foi inspirada em uma gravura do artista italiano Antonio Tempesta. Dujardin utiliza uma tela verticalizada, na qual predominam elementos dinâmicos e de movimento, em um estilo tipicamente barroco, que lembra a pintura de Van Dyck. Na parte inferior da obra, se concentram os personagens terrenos, ou seja, Paulo e sua comitiva, aparentando muita confusão e espanto. Paulo encontra-se caído no chão, com vários cavaleiros montados cercando-o em grande agitação, formando um círculo ao seu redor. Um desses cavaleiros segura uma enorme bandeira vermelha que se ergue em diagonal para a parte superior da tela, aumentando a sensação de dinamismo na imagem. Iluminando a cena, percebe-se uma luz dourada que emana do canto superior esquerdo da tela, a partir de um pequeno anjo que aparece entre as nuvens. 

 

Inspirada em uma gravura italiana, a tela utiliza de elementos tradicionais na representação do episódio, enfatizando a questão da surpresa da aparição fantástica e do medo e confusão que ela causou entre os integrantes da comitiva de Paulo. O apóstolo, entretanto, aparenta estar menos temeroso e mais curioso que os outros personagens. Ele veste apenas um tecido branco em torno dos quadris, lembrando as vestimentas de Cristo no memento da crucificação. A parte superior da tela é dominada pela figura do pequeno anjo e pela luz dourada, que se reflete na enorme bandeira que ocupa a região central da tela. Essa luz dourada, na parte inferior da imagem, se converte em uma luz teatral que cria fortes contrastes e aumenta a carga dramática da cena.

Francesco Solimena (1657-1747)
A Conversão de São Paulo, 1689-90
Afresco
San Paolo Maggiore, Nápoles

Fonte: Web Gallery of Art

Francesco Solimena foi um pintor que atuou em Nápoles na primeira metade do século XVIII. Foi responsável pela decoração com afrescos de muitas igrejas napolitanas, tendo uma carreira longa e bastante produtiva. Seu estilo é eminentemente barroco, embora se perceba uma luminosidade mais homogênea em suas pinturas, que apresenta uma clareza que remete a artistas renascentistas.

 

É o caso desse afresco que representa a conversão de Paulo, incluído em seu programa decorativo executado na Igreja San Paolo Maggiore, em Nápoles. A cena mostra toda a turbulência e movimento que se espera em uma cena barroca, com o apóstolo caído na chão no centro da tela, com as pernas ainda sobre o cavalo. Ao seu redor, muita confusão e pânico entre os membros de sua comitiva, com um de seus homens ainda montado tentando se proteger da luz que incide da parte superior da tela. Nesta parte, vemos Jesus surgindo entre nuvens, com os braços abertos e irradiando luz.

 

Embora o centro da imagem encontre-se sob essa luz teatral que emana de Cristo na parte superior da obra, o restante da cena não se encontra imerso em uma obscuridade profunda. Os contrastes utilizados pelo artista são mais suaves, criando uma luminosidade mais homogênea na obra, que ressalta as qualidades do desenho. A grande confusão e multiplicidade de elementos observada na parte inferior da imagem se opõe à solidão e tranquilidade de Cristo na parte superior da mesma, possibilitando mais uma vez confrontar os conceitos de divindade e humanidade, bem como de luz e matéria, envolvidos no episódio.

Louis Boullogne, o Jovem (1654-1733)
Conversão de São Paulo, final séc. XVII ou Início do séc. XVIII
Óleo sobre tela
Museé dês Beaux-Arts, Troyes

Fonte: Web Gallery of Art

Louis Boullogne, o Jovem foi um pintor francês que atuou no final do século XVII e início do século XVIII. Seu pai, Louis Boullogne, o Velho, foi um artista consagrado em Paris, um dos fundadores da Academia de Pintura, e lhe garantiu uma sólida formação artística. Louis Boullogne, o Jovem, participou da decoração de Versalhes, tendo sido também professor na Academia e pintor do Rei Luis XIV, que lhe conferiu título de nobreza.

 

Sua representação do episódio da conversão de Paulo apresenta um estilo bem característico da pintura francesa da época. Embora a obra passe uma sensação de movimento, este é bem menos frenético que o observado nas obras do barroco italiano. Os elementos presentes também são menos numerosos, restringindo-se a Paulo, cinco integrantes da sua comitiva e Cristo. Paulo está caído no chão com uma das pernas ainda sobre o cavalo, de braços abertos recebendo a luz que irradia de Cristo. Seus olhos parecem estar fechados, remetendo à cegueira que se seguiu ao evento. Alguns soldados tentam amparar o apóstolo, enquanto outros fogem com medo. Na parte superior, aparece Cristo envolto em uma intensa luz dourada e acompanhado de um pequeno anjo que se agarra a ele.

 

A cena parece se passar bem mais próxima ao espectador que na obra anterior. Apresenta também contrastes mais fortes que a pintura antrior, mas não chega a criar zonas de obscuridade muito intensa. O que predomina são os tons amarelados da luz dourada e seus reflexos nos elementos da parte inferior da pintura, em especial nas partes metálicas das armaduras dos soldados. Chama a atenção a postura do cavalo, que evoca submissão, bem como de Paulo, que abre os braços como que a receber a luz divina, lembrando a pintura de Caravaggio.

Johannes Jakob Hartmann (c. 1680-c. 1731)
Paisagem com a Conversão de São Paulo, início do século XVIII 
Óleo sobre tela, 88 x 121 cm
Coleção privada

Fonte: Web Gallery of Art

Johannes Jakob Hartmann foi um pintor de paisagens da região da Bohemia (atual República Tcheca) que atuou em Praga no início do século XVIII. Pouco se sabe sobre sua formação, mas teve influência da pintura flamenga, especialmente de Jan Brueghel, o Velho.

 

De fato, sua representação da conversão de Paulo trata-se na realidade de uma paisagem, na qual se passa o episódio, lembrando a pintura de Pieter  Brueghel, o Velho (pai de Jan Brueghel, o Velho), já apresentada anteriormente, em termos de concepção de imagem. Visualmente, no entanto, a pintura de Hartmann lembra a de artistas barrocos flamengos e franceses, como o próprio Jan Brueghel, o Velho, ou até Nicolas Poussin.

 

A cena se passa em uma clareira situada entre uma floresta e a margem de um rio. Percebe-se um grande número de pessoas presentes e espalhadas pela clareira, que apresenta alguns locais específicos com iluminação mais intensa. Em um desses pontos iluminados, na parte central da obra, é possível distinguir uma figura caída no chão, sendo amparada, bem como um cavalo, tratando-se provavelmente de Paulo no momento em que cai de sua montaria. No entanto, a presença de outros pontos iluminados, especialmente um que aparece no meio da floresta com um homem montado acompanhado de algumas pessoas, podem sugerir a representação de uma sequência de acontecimentos, recurso utilizado em pinturas francesas da época. A tela não mostra Jesus ou qualquer tipo de aparição no céu, que se apresenta nublado, com um feixe de luz irradiando entre as nuvens em direção ao solo.

 

Como na pintura anteriormente apresentada de Pieter Brueghel, o Velho, nessa obra os elementos referentes ao episódio bíblico ocupam uma parte pequena da obra, que acaba sendo interessante pelos mesmos motivos mencionados antes, mas que fogem ao tema em si. De qualquer forma, trata-se de uma tela que traz muitos aspectos curiosos (a forma de algumas árvores, presença de elementos arquitetônicos, entre outros) e dignos de uma análise mais detalhada, mas que fogem aos objetivos deste texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

As obras aqui mostradas não esgotam as representações do episódio na história da arte. Trata-se de um tema muito explorado ao longo dos séculos, com diversos tipos de soluções formais adotadas pelos artistas e enfatizando distintas questões envolvidas no episódio.

 


Entre as características mais representativas do tema está a queda do apóstolo no chão, aspecto que marca a intervenção direta de Jesus naquele que era, no momento, o maior inimigo do nascente Cristianismo. Nesse sentido, a queda de Paulo (então ainda conhecido como Saulo) representa não apenas o arrojar ao solo de um inimigo e sua conversão em um aliado, mas uma demonstração do imenso poder de Cristo. Nesse sentido, muitas representações enfatizam essa questão, mostrando a comitiva de Paulo, formada por numerosos soldados, sendo completamente desarticulada e colocada em fuga e desespero. O maior poder terreno, o poder da força militar, dessa forma, foi facilmente vencido por Cristo e sua aparição entre os homens e muitas representações do episódio enfatizam esse aspecto, às vezes apresentando o próprio Paulo como um soldado.

 

Outro elemento fundamental nas representações é a luz, que se associa ao conceito de iluminação espiritual, ou seja, na questão da conversão em si. Utilizando-se das mais variadas técnicas e possibilidades criativas de cada época, os artistas sempre enfatizaram essa questão, muitas vezes contrapondo o conceito de luminosidade e espiritualidade aos conceitos de obscuridade e materialidade. Nesse sentido, a presença (muitas vezes ostensiva) do elemento animal do cavalo em que Paulo estava montado pode ser interpretada como um recurso para explorar essa dicotomia, bem como a ausência da figura de Cristo que, despersonalizado, é representado pela luz e suas qualidades divinas.

 

A atitude do apóstolo diante da revelação luminosa é explorada de forma diversa pelos artistas, de acordo com as intenções pretendidas por eles, seus próprios entendimentos sobre o tema ou o desejo dos que encomendavam as obras. Paulo às vezes aparece com medo, com espanto, tentando se proteger da luz ou aceitando e recepcionando-a de braços abertos. Essa variedade de disposições da alma representada pelos artistas se soma às inúmeras possibilidades interpretativas que surgem ao analisar cada obra, revelando um verdadeiro mosaico de emoções e reflexões possíveis a partir desse tema.

 

Enfim, muitas outras características das representações do episódio da conversão de São Paulo poderiam ainda ser destacados, mas o que se pode dizer para finalizar é que trata-se de uma passagem muito rica em ensinamentos e que proporcionou a criação de obras de arte magníficas, como as apresentadas aqui. A partir desse acontecimento fantástico, nasceu um dos principais nomes do Cristianismo, o que mostra a imensa relevância daquele momento na história não apenas da arte, mas da própria humanidade.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: nova edição papal. Charlotte, NC: C. D. Stampley Enterprises, 1974.

EMMANUEL (Espírito). Paulo e Estevão. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. 45. ed. Brasília: FEB, 2019.

KRÉN, Emil; MARX, Daniel. Web Gallery of Art. Disponível em: <http://www.wga.hu>. Acesso em: 06 nov. 2020.

LONGHI, Roberto. Caravaggio. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

ONLINE PARALLEL BIBLE PROJECT. Bible Hub. Glassport, PA, 2004-2020. Disponível em: <https://biblehub.com/>. Acesso em: 27 dez. 2024.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

COMO CITAR ESSE TEXTO 

SILVA, Marcelo de Souza. A conversão de São Paulo. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2024. Disponível em: <https://www.hacer.com.br/sao-paulo>. Acesso em: [dia mês. ano].

bottom of page