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O nascimento de Botticelli

O nome Botticelli surgiu a partir de um apelido dado ao irmão mais velho do pintor, aludindo ao formato do seu corpo, que era similar a um pequeno barril (botticello, em italiano) [1]. Apesar de não ser propriamente um elogio, foi assumido como nome de família e, desta forma, Alessandro di Mariano Filipepi ficou conhecido como Sandro Botticelli. Sandro é abreviação de Alessandro, conforme o costume italiano de fazer esta diminuição no nome.

 

Sandro nasceu no dia 1º de Março de 1445 [2], em Florença, na Itália, e não há muitos registros sobre sua infância. O pintor e biógrafo de artistas Giorgio Vasari (1998, p. 224) relata que seu pai, Mariano Filipepi, cuidou para que ele aprendesse tudo que as crianças da época tinham costume de estudar para serem bons comerciantes. O menino entendia rapidamente tudo o que gostava, mas não tinha muita paciência para leitura, escrita e aritmética, então seu pai, obstinado em dar-lhe os conhecimentos de uma profissão, encaminhou-o a um grande mestre da ourivesaria.

Sandro Botticelli (c. 1445-1510)

A adoração dos magos (detalhe) (possível autorretrato de Botticelli), 1475

Têmpera sobre madeira, 111 cm x 134 cm

Florença, Galleria degli Ufizzi

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Havia uma relação próxima entre ourives e pintores. Convivendo com eles, o jovem rapaz, que já demonstrava grande aptidão para o desenho, interessou-se por pintura. Seu pai, conhecendo os caprichos do filho, levou-o para ser aprendiz de Fra Filippo Lippi (c. 1406-1469), que o ensinou as técnicas e também influenciou seu estilo. Sandro tornou-se um grande gravador e, aos 25 anos, já possuía seu próprio ateliê de pintura, que foi muito bem frequentado ao longo de sua existência, um de seus aprendizes mais conhecidos é Filippino Lippi (c. 1457-1504) e muitas de suas obras resistem até os dias atuais.

 

O mestre Filippo Lippi (c. 1406-1469) apreciava Masaccio (1401-1428) e ensinou a Botticelli e seus colegas (entre eles Andrea del Verrocchio, c. 1435-1488) o seu naturalismo científico para a correta representação das figuras (usando a perspectiva para dar ilusão de tridimensionalidade). Porém, não se restringiu a isso, já que seu próprio exemplo era de um estilo transformado em “[...] linear e carregado de motivos decorativos - vestes leves e esvoaçantes, brocados, etc. [...] demonstrando a melancólica delicadeza e a primorosa luz pálida que caracterizam sua obra [...]” (CHILVERS, 2007, p. 310).

 

Destas influências e aprendizados, pode-se perceber que as formas ditas desproporcionais do pintor não se devem à falta de conhecimento do corpo humano ou de técnicas de desenho, e sim a uma “licença poética”, visando dar mais graciosidade, beleza e harmonia às composições. Sobre as idiossincrasias do estilo de Botticelli, o Dicionário Oxford de Arte afirma:

Seu temperamento ligava-o à corrente estética de fins do século XV, que reagiu ao naturalismo científico de Masaccio e seus seguidores, retomando certos elementos do estilo gótico – um sentimento delicado, aproximando-se por vezes do sentimentalismo, da graça feminina, e uma ênfase nas qualidades ornamentais e evocativas da linha. (CHILVERS, 2007, p. 73)

O pintor trabalhou para as famílias florentinas, sobretudo para a família Médici (banqueiros), cujo patronato recebeu após a confecção da tela A adoração dos Magos (1475), na qual supõe-se que a figura à esquerda do quadro, olhando para o espectador, seja um autorretrato do jovem Botticelli (detalhe abaixo). Ter qualidade de vida garantida, pela proteção dos Médici, foi muito importante para dar ao pintor condições de criar muitas obras e estar dentro dos círculos intelectuais da época.

Sandro Botticelli (c. 1445-1510)

A adoração dos magos, 1475

Têmpera sobre madeira, 111 cm x 134 cm

Florença, Galleria degli Ufizzi

A obra Adoração dos Magos (1475) (figura acima) segue o cânone da estrutura compositiva de imagem em triângulo, maximizando a ideia de crença na convergência de todas as verdades em uma só. Apresenta um tema recorrente, de narrativa bíblica: Maria segurando o menino Jesus, que atrai todos os olhares do quadro. Está ambientado em ruínas greco-romanas o que reforça a esperança em Cristo. Os demais personagens são pessoas ilustres da época (Cosimo Il Vechio, Piero Il Gottoso, Lorenzo Il Magnífico, etc), como os Médici, por exemplo, mesmo que o quadro tenha sido encomendado para o sarcófago da família de Giovanni di Zanobi dal Lama (que aparece no quadro à direita, com cabelos brancos e veste azul, bem discreto).

 

Participando das discussões filosóficas, aprendeu o neoplatonismo cristão, o qual tentou conciliar com as ideias clássicas. Com as encomendas de obras mitológicas, feitas por Lorenzo di Pierfranceso de Médici (não confundir com o Magnífico, ele era primo em segundo grau deste), ele aprofundou seus conhecimentos em mitologia, não se restringindo a apenas narrar histórias dos deuses olímpicos de Ovídio, mas sim fazer uma “personificação simbólica de alguma verdade moral ou metafísica” (CHILVERS, 2007, p. 73).

 

O quadro Primavera (1478) (figura abaixo) é um exemplo da utilização das narrativas mitológicas para execução de uma pintura, supõe-se que Botticelli tenha se baseado em odes de Poliziano, no Fausto de Ovídio e no De rerum natura de Lucrécio. A obra apresenta o momento em que Clóris é devolvida à terra e transforma-se em Flora (à direita), ao centro representa Vênus e seu filho Cupido, e à esquerda pode-se ver as Três Graças e provavelmente o deus Mercúrio.

Sandro Botticelli (c. 1445-1510)

Primavera, 1478
Têmpera sobre tela, 203 cm x 314 cm

Florença, Galleria degli Ufizzi

A obra La nascita di Venere (O Nascimento de Vênus, 1478) (figura abaixo) é representativa da personificação de ideal da beleza feminina. Nela apresenta-se o momento em que a deusa emerge do mar em uma concha, empurrada pelo vento Zéfiro e recebe um manto, provavelmente inspirado nos contos de Metamorfose (Ovídio), mas também poderia ser interpretada como o nascimento da alma pelas águas do batismo. Para o Dicionário Oxford de Arte, “Como os neoplatônicos consideravam a Beleza como o sinal visível da Divindade, não havia blasfêmia em utilizar a mesma expressão facial para Vênus e para a Virgem Maria” (CHILVERS, 2007, p. 73).

 

Sobre esta tela, o historiador da arte Ernst Gombrich (2009) comenta:

A Vênus de Botticelli é tão bela que não nos apercebemos do comprimento incomum do seu pescoço, ou o acentuado caimento dos seus ombros e o modo singular como o braço esquerdo se articula ao tronco. Ou, melhor ainda, deveríamos dizer que essas liberdades que por Botticelli foram tomadas a respeito da natureza, a fim de conseguir um contorno gracioso das figuras, aumentam a beleza e a harmonia do conjunto na medida em que intensificam a impressão de um ser infinitamente delicado e terno, impelido para as nossas praias como dádiva do Céu. (p. 264)

Sandro Botticelli (c. 1445-1510)

O nascimento de Vênus, ~ 1485

Têmpera sobre tela, 172,5 cm x 278,5 cm

Florença, Galleria degli Ufizzi

Sandro Botticelli era considerado ótimo retratista, dentre suas mais famosas representações pode-se citar a de Giuliano de Médici (1478) (figura ao lado) e Dante Alighieri (1495), deste último conterrâneo, também chegou a ilustrar uma versão manuscrita da Divina Comédia.

 

Passou toda sua vida em Florença, saiu da cidade apenas para participar da decoração da Capela Sistina, em Roma, nos anos de 1481 e 1482, junto com Perugino (c. 1445-1523), Rosselli (1439-1507) e Ghirlandaio (1449-1494). Este convite do papa Sisto IV denota que o pintor já possuía grande prestígio e reconhecimento pelo seu estilo peculiar. As descrições dos afrescos foram baseadas no site oficial da Capela Sistina, no qual também pode-se visualizar as imagens das respectivas obras, ou se preferir, pode fazer um tour virtual

 

Na parede esquerda (a partir do altar), tem-se o painel Punizione di Core, Datan e Abiram (Punição de Korah, Natam e Abiram, c. 1481), o castigo foi narrado em Números 16, 1-35 (Velho Testamento). Estes sacerdotes hebreus se recusaram a seguir as orientações de Moisés e Araão, que eram as autoridades civis e religiosas do povo escolhido, então, foram engolidos pela terra e consumidos por um fogo invisível, juntamente com suas famílias (tradução da autora).

Sandro Botticelli (c. 1445-1510)

Retrato de Giuliano de Medici, 1478
Têmpera sobre papel, 53 x 76 cm
Washington, National Gallery of Art

Também na parede esquerda (a partir do altar), tem-se a obra Fatti della vita di Mosè (Cenas da Vida de Moisés, c. 1481), baseada em episódios que estão narrados no Livro do Êxodo (Velho Testamento). Esta obra teve que articular três histórias em um único afresco; são elas: o assassinato do egípcio (Êxodo 2, 11-15), a luta com os pastores para defender as filhas de Jetro (Êxodo 2, 16-21) e a visão da sarça ardente (Êxodo 3, 1-12). Moisés é comparado aqui com Jesus Cristo que atira o demônio do precipício, numa relação com o quadro na parede à sua frente (Tentação de Jesus Cristo) e também é um bom pastor que guiará o povo eleito através do deserto (tradução da autora).

 

Na parte direita (a partir do altar), tem-se a obra Tentazione di Cristo e la Purificazione del lebbroso (Tentação de Cristo e a Purificação do leproso, c. 1481), histórias narradas em todos evangelhos (Novo Testamento), respectivamente em Mateus 4, 1-11 e Mateus 8, 1-4, por exemplo. No alto à esquerda, Cristo encontra o demônio que está transfigurado em eremita e tenta Jesus solicitando que ele faça um milagre; ao fundo, no centro, sobre o frontão de um templo, que recorda o Hospital de São Francisco (perto do Vaticano, mandado construir por Sisto IV), Satanás desafia Jesus a alçar-se no vazio; no alto à direita, vemos Jesus jogando o diabo de um precipício; no primeiro plano, tem-se um sacrifício, provavelmente oferecido pelo leproso em agradecimento à sua cura, simbolicamente pode significar o sangue de Cristo para salvar a humanidade (tradução da autora).

 

Vasari (apud CHILVERS, 2007) afirma que Botticelli chegou a repudiar suas famosas obras pagãs no final da sua vida, quando suas pinturas se tornaram mais sóbrias e religiosas, visivelmente influenciado pelos sermões do monge beneditino Girolamo Savonarola (1452-1498), que pregava austeridade e reforma, do qual se tornou discípulo, na década de 1490, quando os Médici foram expulsos de Florença.

 

A obra mais representativa desta época de religiosidade e êxtase é a Natividade Mística (figura abaixo), nela há a conciliação do nascimento de Cristo com a sua segunda vinda à terra para o Juízo Final.

Sandro Botticelli (c. 1445-1510)

Natividade Mística, 1501

Têmpera sobre tela, 108,5 cm x 75 cm

Londres, National Gallery

Quando Leonardo da Vinci voltou à cidade em 1500, trazendo as técnicas do sfumatto (esfumaçado) e do chiaroscuro (claro e escuro) o estilo linear de Botticelli foi considerado arcaico, e ele foi ficando na obscuridade. Morreu empobrecido, em 17 de Maio de 1510. Permaneceu longo tempo esquecido até que sua reputação fosse recuperada por críticos e estudiosos, como Ruskin e Walter Pater. Os pré-rafaelitas contribuíram, na medida em que imitaram as figuras pálidas e alongadas de Botticelli; mais tarde, influenciou também a Art Nouveau (CHILVERS, 2007). Atualmente, é conhecido como um dos maiores pintores do Quattrocento Italiano.

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

BELL, Julian.  Uma Nova História da Arte.  São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 

CAPELA SISTINA.  Disponível em: <http://mv.vatican.va/2_IT/pages/CSN/CSN_Storia.html>. Acesso em: 28 set. 2010.

 

CHILVERS, Ian.  Dicionário Oxford de Arte.  São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

GALERIA DEGLI UFFIZZI.  Disponível em: <http://www.uffizi.firenze.it/musei/uffizi/>. Acesso em: 28 set. 2010.

 

GOMBRICH, Ernst H.  A História da Arte.  Rio de Janeiro: LTC, 2009.

 

VASARI, Giorgio.  The lives of the artists.  2 ed. Nova Iorque: Oxford Press University, 1998. Disponível em: <http://books.google.com.br>. Acesso em: 29 set. 2010.

 

 

 

NOTAS

 

[1] Esta história consta em algumas fontes (na internet e no Dicionário Oxford de Arte). Vasari (1998), porém, indica que o nome Botticelli é relativo ao ourives (talvez a uma guilda) que ensinou-o esta profissão, inserindo-o em seu círculo de amigos pintores, o qual despertou no jovem Sandro o desejo pela arte. (voltar ao texto na nota 1)

 

[2] Em algumas fontes encontrou-se 1444 e, em outras, 1446. Mesmo com tantas pesquisas acerca de artistas famosos, por vezes é difícil delimitar precisamente as datas pontuais em suas vidas antes de obterem fama, visto que os documentos e registros nem sempre são localizados ou não estão íntegros. (voltar ao texto na nota 2)

 

 

 

Este texto foi publicado originalmente no projeto Tópicos em História da Arte: escritos e leituras sobre arte e artistas, do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Disponível em: http://www.ufrgs.br/napead/repositorio/objetos/historia-arte/idmod.php?p=botticelli

A presente versão inclui algumas modificações e acréscimos, realizados em 2016.

Notas
Se você aprecia Botticelli, talvez goste de ler também As ambiguidades em Palas e o Centauro.
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